24 de agosto de 2007

O Corsel

Cavalos sabem o caminho de casa. Desconhecem o temor do espaço que os separa do destino final.
Cavalos destroem os ossos, pisoteiam a grama, o inseto, o chão, a terra enlameada ou endurecida pelo Sol. São a máxima representação da mente, do descontrole, da loucura, da paixão e da liberdade.

Para onde vai o corsel? Conte-lhe um segredo, carregado pelo vento ele irá para longe; e uma vez lá, desencarnará a tua mensagem com um breve suspiro.
Amarrem-lhe cordas, elas arrebentarão; privem-no do alimento, ele suportará; apele, queime, chicoteie, mais, mais, mais, coloquem-no prostrado diante de um olhar, ele não se moverá; e verás noite e dia morrer, como se Ele conspirasse contra ti.

Não é possível domar o corsel, abra a porteira, derrube a cerca, deslace as fitas vermelhas, encontre-o, observe teu porte, tua cor, então entenderá.

E as estrelas o premiarão com a mais bela compreensão, e aquela que tu sempre refutas (a mente), nunca mais irás condenar.

21 de agosto de 2007

No chão da cozinha

Derramadas ali estavam as sobras do vício, nos azulejos velhos da cozinha reformada.
Subindo com um olhar deslizante, começando pelos sapatos pretos e terminando no hematoma que surgia na coxa esquerda, queixava-se dos próprios sonhos borrando toda a maquiagem, mordendo os lábios entre soluços já enfraquecidos pela bebida. Sabia desde o início do maldito dia que estaria ali quando todos fossem embora, rindo sarcasticamente de volta para suas vidinhas.
Metendo as mãos entre os cabelos, um emaranhado sem nós, buscava um conforto antigo dos tempos em que, só, encontrava-se bem e satisfeita. Ali no chão da cozinha era outra, descontrolada, com o corpo e o copo largados, sentia um profundo desapego e, mesmo de modo estranho, ria da própria desgraça com lágrimas escorrendo até o frouxo sutiã.
Em vinte minutos levantaria dali, iria para cama, sozinha, e quando acordasse indisposta no dia seguinte, descobriria e ligaria para o número deixado no bolso de seu casaco verde.

15 de agosto de 2007

Amigos (e Amantes)

Acordam as emoções, e atrás delas vem o resto: os sentimentos, os apelos físicos, as pequenas confusões mentais, a música de ontem.
Entramos no mundo dos outros e os outros no nosso, no metrô, na esquina, entre os telefonemas matinais, as perguntas incoerentes, as risadinhas abafadas, a dedicação.
Mal são sete horas, dessa manhã inesperada, que só existe uma vez, e estamos dedilhando os afazeres, desejamos café, uma mesinha, uma conversa descontroladamente cultural, mas perdemos tempo (e como adoramos isso) com as próprias risadinhas abafadas, aquelas de dois minutos atrás, as de sempre.
Rabiscos, olhos abertos por todo o papel, rostos estranhos, uma busca pela inspiração, ou pelo menos por uma ordem na criatividade... impossível, queremos algo além, aquilo que chamam de liberdade talvez, mas preferimos algo muito mais doce (e econômico): sorvete. Principalmente o compartilhado, o que nos faz rir absurdos na hora do almoço, a nossa conveniência preferida.
Foram-se as horas e passamos por todos os picos de despreocupação e preocupação, igualzinho à bolsa de valores, uma tensão necessária, que engolimos todos os dias, e não é nada sério.
Nós somos os próprios amantes, sibilando nas noites o futuro, descontando os problemas, envolvidos em mexericos atrás das paredes, rindo, sorrindo... dormindo.
E somos os melhores nisso.