29 de março de 2012

evidências dos seus olhos castanhos

desconcentrado, estava desconcentrado por estar concentrado demais, aéreo em pequenas multidões, como um leitor em praça pública, mas não havia livro, lia um corpo e movimentos, acompanhava os olhos castanhos em perfeita simetria com o suave desenho animado que era a boca, feita a dedo, num único borrão; mas o ritmo incômodo de todo o conjunto o deixava mais suscetível à admiração do estado em repouso - ainda que incessantemente vibrante - de todos esses traços.

e imaginou-se ali, fechado pela redoma de sombras como mero observador - quase ausente - notando com certa tristeza, o óbvio desconforto pela sua distância do objeto, tamanha ao ponto que só poderia descrevê-lo superficialmente: sua casca humana ainda fresca, frágil e mole; e poucas vezes o espírito afiado que tanto desejava ver mostrava-se além da conta; enclausurado na técnica, no esmero da sedução, na vontade - pura - de ser através de algo e não apenas ser.

cada vez mais tinha essa impressão que apenas olhos castanhos estavam a salvo de deixar transparecer a verdade pois eram comuns e naturalmente dissimulados, mas frente a frente, pares de mesma cor e profundidade, podiam muitas vezes sustentar-se num embate vigoroso de poucos segundos, mas que traziam ao espírito de seus donos o gosto um pouco aguado do empate.

2 de março de 2012

contra o poente

estranhos pássaros que esperam tanto no ninho, e experimentam com suas longas asas a liberdade aos poucos, apreciando os céus com certo desdém, uma vontade de não ser o que se é, de estar por estar e, sem rodeios, ignorando aos apelos dos outros pelo voo compartilhado;

e com tamanha arrogância da sua gentileza voa sobre nós, para longe, deixando-nos - os aqui amantes dos voos curtos - sem mais nos enganar, vai-se e não olha para trás, com assombro e silêncio, contra o poente.

igual a tantos outros.