31 de janeiro de 2008

foi você que cresceu

Não há cartas, telefonemas, pensamentos expressos ou sensações; via e a desilusão ainda não era compreendida. Não era muito inteligente, mas havia sacrifícios internos em prol de uma melhor imagem, de um comportamento mais controlado; uma dedicação cansativa, uma chama que se extinguia aos poucos, esvaindo-se contra a vontade. Certas vezes a consciência toma as armas da sua mão deixando o corpo vazio, apenas vivo por um piloto automático, e as falhas são consertadas por procedimentos-padrão; e a luz retorna, acende devagar, e os olhos não reconhecem as paredes internas, não percebem que os níveis estão estabilizados, que os números somaram-se, que as pernas aguardam ordens.

Levante-se. Receba as carícias da manhã negligente, foi-se a vida ontem e hoje não há nada mais que uma única chance de aprendizado; desculpar-se é uma motivação robótica, é uma obrigação, não para conforto mental, mas sim para amarrar a boca do saco de larvas e sentimentos.

Eis o vento e com ele o soar de um telefone, uma nova mensagem.

- Menino o mundo não mudou tanto, foi você que cresceu.

Apenas o Sol justifica tudo isso, aquele sorriso repuxado de lembranças.

21 de janeiro de 2008

Línguas de Faca | O Picadeiro

Óbvio ninguém entender como as coisas ocorrem; atrás de um palco sempre há a regra básica da disciplina jogada pro alto, no momento errado tudo sempre está fora do lugar; para dar vantagem ao jabuti, basta elogiar o coelho.

Mas eis aqui a parte tragicomédia da coisa: a fala. Naturalmente o poder das palavras é muito mais evidente quando soa, vibra, atravessa carne ou pedra; e é correto afirmar que os homens de boa vontade nunca sabem usá-las, nunca dominam o dedilhar, a segurança aracnídea da coisa, não, a justiça é gravada nas mentes alheias pelo som, como já foi dito, atravessa a carne.

O grande mérito é daquele que sabe ouvir a seu respeito, afirma todas as verdades, varre todas as mentiras, e ainda assim está disposto a afiar as línguas, sejam as boas ou as ruins; o fio é necessário, tolos são os atiradores de faca que não exigem da sua dupla um filete à mais de coragem e confiança, ou os que não amolam as armas por receio, pelo sofrer antecipado. Estes atiram apenas plástico contra a solidez, contra o fogo; de que adianta choramingar e semear a inquietação se não se aprendeu a moral da história? Se só se vive de uma mentirinha em cima da outra, ou se a única empolgação da vida é saber o que ocorre na janela do vizinho?

O picadeiro tem dessas coisas, virtudes e perigo, mas só sabe lidar bem com isso, e com as pessoas, quem já foi atração de circo e não se deixou levar pelo orgulho, ou caiu do cavalo e riu depois.

Nem toda criança gostou de palhaço; nem todo palhaço viveu só de palhaçada.

18 de janeiro de 2008

Alice

Alice dedicava-se à leitura agora, à leitura e ao calor morno; palavras de um livro eram mais livres que as faladas, saídas de bocas, presas à mente. A mão apenas transcreve direto sem o filtro do som, sem o confronto do olho humano. Alice não tinha mais vícios, pois a vida a ocupava além da conta, da liberdade tátil de copos ou fumo, estava plena de si, viciada nos próprios sentimentos, louca-serena; um anjo de asas alvas intrigado com os pecados humanos; estes tão vastos quanto florzinhas amarelas no campo de viço verde.

Mas Alice só podia agora acalmar-se com personagens que só vivem em pensamentos, só encarnam na mente alheia, sem ela são apenas fruto vazio da inspiração; apenas nomes e angústias e desejos no papel. Ela era isso, sentia viver como eles (esses nomes), não como heroína, não; heróis são tolos demais, perfeitos demais, não possuem o que é mais apaixonante na vida real: o cotidiano, a mesmice, a vida como ela é; mesmo quando o têm, é repleto de falsidade, e Alice reconhecia seus comuns no papel quando via todas as coisas juntas, toda a desordem existente; ora interna em conflitos e paixões, ora externa no barulho e no silêncio, seja das vozes (essas nunca mudas), seja em fatos, nos movimentos alheios a nós.

Saudade é uma palavra única, e ela compreendia seu sentido quando tocava os próprios lábios, ou quando deitava-se tarde com um livro.

6 de janeiro de 2008

Perdas e Danos

Pura estima, agarrou-o pelo coração e apertou até doer; era mais que um desejo do possuidor, mas com esse seria diferente. Analisou seus desejos corrompidos, suas mágoas, uma a uma, sentiu o que mais gostava: o instinto de vítima.

Cigarros, cinco no maço, três no cinzeiro, nove pela janela. O resto não participou do show particular. Não desistiria, riu algumas vezes, e antes mesmo de chamar a vingança, tinha elaborado o plano.
Constatou que o que não possuía, havia perdido. Então sempre que conseguia algo, sentia um alívio de resgate e não de conquista. Errado, porém menos pretensioso, já que o alívio era direto, e a conquista apenas puro orgulho. Isso não bastava.

Ela apoderou-se e viveu por ele. Tinha ainda muito o que fazer, mas seus braços davam conta do resto do mundo, com aquele precisava estar por baixo da pele.

- Conte-me um segredo. - não podia. Não devia. Disse mesmo assim.
- Vou me vingar de mim. - foi claro. Deixou-se acumular, dias embolados, pensamentos, espinhos; cravejaram cada delicadeza, calma e cada noite.
- Como? - não queria saber de fato, apenas reconhecer. Seu dever. Seus honorários. Basicamente isso.
- Veja bem, não se deve amaldiçoar o mundo aos berros por suas perdas e danos, compreenda - aí é que estava a sua realidade, a verdade saiu pela boca facilmente - a culpa é sua.

A vingança chorou lá dentro, retirou-se; nele estavam todas as estacas de segurança, cada broto firme ao Sol, nele estava sua pior inimiga: a coragem. Mas como podia a coragem ser inimiga da vingança? Simples. Vingar-se de si, não é vingar-se de fato, não do jeito que a vingança direciona. É a coragem que faz a diferença, ela só existe nesse tipo de vingança, nas outras, nas reais contra outrem, vive o antônimo, dança a covardia.

- Eis o progresso. - a analista sorriu, não pôde conter. Quando o serviço fazia efeito... sorria depois, mas com este era diferente.
- É, talvez. Pelo menos a ordem está melhor. - retribuiu.

E estava de fato; estava mesmo.

2 de janeiro de 2008

A Casa Novelha

Cheirava a tempo. Afinal foram dez anos sem vê-la, sem pisar ou dormir naquele lugar. Algo entre os tacos no chão e as coisas atrás da tinta seminova da parede respirava. Vibrava de leve, não eram os encanamentos do segundo andar, ou microterremotos da rua. A rua era quieta. Eram apenas lembranças, um punhado considerável.

'Parecia maior...'

Cinco portas na sala, portas nubladas, paredes brancas, quantas entradas? Três. A nova velha casa, ou a casa novelha como fosse, parecia ter perdido um certo brilho.
Não há tantas flores no jardim tomado pelas plantas, o portão emperra, e ela viveu dois anos vazia, e foi justamente nesses dois que envelheceu dez de uma só vez.

Logo vieram as caixas, veio o presente morar no passado, ainda com nacos daquele tempo, mas naquela primavera tudo era bem diferente, tudo movia-se pesadamente para o pior. Neste verão existem é claro algumas dúvidas, algum desgosto, mas a casa vive, e seus 'antinovos' habitantes (ou quase habitantes) sabem como lidar com isso. Na verdade, inconscientemente, ninguém nunca saiu dali, ali foram os anos mais longos para cada geração. Ali nasceram os primeiros medos do mais novo, as incertezas da do meio, e a semente de refúgio da mais velha.

Assim trouxeram consigo o relógio que só tocava naquela casa, o real e o metafórico, ambos para despertar todo aquele lugar, cujo destino era insólito até agora.

Sorriu desajeitadamente e suspirou, enquanto a casa bocejava.