29 de dezembro de 2008

Vidro

Antonio esperava chegar à alguma grande conclusão no final do ano; esclarecer algum grande dilema, escrever cartões aos amigos, ligar para os mais queridos e familiares. Antonio não fez nada disso.

À beira do novo ano, acreditou que era clichê demais fazer tudo isso, como sempre fizera, como sempre foi educado a fazer. Sem se dar conta, observando as plantas balançarem com o vento do outro lado da porta de vidro, perseguiu o que a mente tentava lhe esconder. Pensamentos vazios, translúcidos, percebeu que eram pensamentos sobre si, quase ninguém se da conta disso quando se pensa no vazio, na vastidão; o sentimento solitário é o mais egocêntrico de todos, e raramente é benéfico no momento em que se sente.

Sentiu-se como o vidro, como um filtro único da luz que somente a realidade e o fogo poderiam destruir. Mesmo quando chegou ao ponto de se enxergar aos pedaços, de vivenciar a dor com todos os seus amargos soluços de felicidade, aqueles que explodem diante de centenas de pensamentos acelerados...
'nunca amei, não tive escolha, não o fiz, não sou, esqueci, poderia, fui até onde quis... a idéia foi minha, não há ninguém, depois... mas ainda, seria diferente? eu nunca... sim, vivi.'

Chegou ao vazio ao olhar novamente pelo vidro da porta, as plantas à tarde, até que o pulso bateu fraco, nenhuma lágrima, só dor e alegria, o fim de um ciclo pode enlouquecer um ser humano.

Antonio lembrou-se que quando pensava muito sobre si, sobre os seus desejos, esquecia do resto. O resto era o presente. Dele ninguém pode escapar. Não foi à toa que algumas semanas depois de esquecer o vidro... (na verdade, ele sabia que dificilmente se esquece os sentimentos atrelados aos objetos, é um desvio necessário. Algo existe com a única função de materializar lembranças, viva com ela domada ou se livre do signo mas jamais da memória.) foi pego de surpresa por uma situação simples.

Os novos dias correriam ou se arrastariam. Antonio nunca esqueceria dos sentimentos que vieram através do vidro, não sabia se das plantas ou da luz, mas havia ainda a vontade de tentar; naquele ponto onde a solidão se torna individualidade e se consegue as coisas com a lucidez do preço que se paga por elas.

Sonhos por sonhos, e nem um centavo à mais.

26 de novembro de 2008

Outra chance

Mesmo perdida entre os fatos, e se sentindo absolutamente sozinha, encontrou a coragem em meio as próprias palavras. Buscou por essas palavras, não foi um acaso, uma coincidência de limpeza doméstica. Estava em busca de si mesma.
Mas tentou encontrar-se diversas vezes, ter um descanso de consciência enquanto a vida pulsava do lado de fora da porta; além das janelas, e lá no horizonte.

Agora estava concentrada na caixa aberta em seu colo, no cheiro das memórias, no medo e êxtase que sentia. Dali brotaram quinze diários, pequenos cadernos de anotações, álbuns de fotografia, duas bonecas; e enquanto cada coisa vinha novamente à luz após tantos anos ou meses esquecidos, a mulher, completamente formada e madura, deixou que as rugas fosse preenchidas de lágrimas.

E o pulso espalhou a dor, a saudade, um vasto arrependimento por tanta coisa não feita, afinal o que havia sido feito não era motivo de arrependimento, mas e o que deixara de lado só pelo medo? E os sonhos que teve que pagar com outros sonhos? - Quando começou a realizar as coisas e deixou de apenas sonhá-las? Não se lembrava.

Sabia que remoer as entranhas lhe traria todo um desgosto pela vida, mas já tinha segurança o suficiente para enfrentar esses monstros criados dentro de si.

Justamente quando seus pensamentos começavam a ganhar profundidade foi interrompida pela campainha do telefone. Até se levantar, vir à superfície das idéias e atender ao telefonema, a pessoa do outro lado da linha pensou em desistir, mas de algum modo precisava falar com ela, mesmo após tanto tempo, naquele momento havia sentido a vontade de mudar o destino.

Dos dois vieram os risos da coincidência. E lá fora ainda era dia, mesmo que fosse em algum outro lugar muito distante.

31 de outubro de 2008

Mulher

Naquela manhã decidiu pela verdade. Estava apta a sentir essa faca cruel dos fatos, não tinha medo, mentira; claro que sentia, fervia o medo bem abaixo do estômago e o soprava espinha acima, mas mantinha-se bruta e direta.

Através do corredor, das garrafas espalhadas, das imagens da noite anterior, todas aquelas pessoas pelos cantos na sua própria casa, e as luzes, teria ouvido a conversa certa? Ou apenas estava entuchando o peito com motivos para deixá-lo? - Deixá-lo traria a dor do parto de um amor inteiro, o aborto de todas as delícias vividas em conjunto, tudo coado e guardado como mágoa amarga, nem mesmo os próximos poderiam adoçar o sentimento que ela gestava. - Respirou o ar da sala: cigarro.
Pensou logo achar a vassoura, varrer o chão, muito mais, queria lavar a casa toda, a cama e os lençóis. 

Vingativa; queria matar o homem ainda adormecido. Tão intolerante, tão sem graça ali despido, espichado e apolíneo, de uma normalidade tremenda, nada cativo, nem pelo cheiro sentira-se atraída, era tal qual um cadáver, porém quente e macio. Gostoso.

Imersa em monólogos na cozinha, enquanto bebia taças dos fantasmas que ainda passavam pela sua cabeça - a troca de olhares do outro lado do jardim, ainda vívida em sua mente - resolveu não matá-lo, não com facas ou armas, mataria-o de prazer, afogaria a alma dele nela inteira, haveria de se tornar o pesadelo que o levantaria pela noite, a referência para todas as outras que ele usasse como fuga, como rápido consolo.

Pensou e repensou a questão, estava doida por algo que não queria realmente. Não assim enlouquecidamente envolvida, estava ali de pé com os dedos nos lábios úmidos e notou que a hora do almoço estava muito distante. Cedo demais para logo confrontar esses pensamentos doentios que vêm pela manhã.

Voltou para cama e só saiu de lá devidamente saciada; domada por si mesma.

6 de outubro de 2008

Da capo em Vermelho

As largas e confortáveis poltronas da platéia vazia traziam-lhe segurança, via do palco o mundo subjugado, abaixo da sua perfomance, mesmo que fosse ruim, afinal nada havia, e acreditar na inferioridade do vazio é valorizar-se, é crer estar acima da luz ou da escuridão.

Mas estava sob holofotes secos e rígidos que zuniam baixo, dando chance à nuvem de poeira de se fazer presente no ato conforme a dança do ar; não temia o pó, estava era se intrometendo num reino não seu ao se isolar no pequeno teatro vazio. Reinavam as coisas, o piano, os cenários, as cordas e o pó. Não se faz nada em um teatro sem pó. Pés e figurinos devem ficar sujos, e no público deve existir, bem perto do palco, o alérgico.

Ouvia os acordes pelos fones, mas não os sentia, apenas levemente, em vibrações fracas. Se houvesse alguém para tocar o piano sentiria as notas vivas no peito e no chão. Frustou-se após os primeiros minutos levando um rubor encarnado na face pelo esforço e também pela raiva. Raiva do da capo, o inevitável recomeço; tinha executado os passos certos, faltava encontrar a música sem acompanhá-la, fazer um único compasso sem precisar das notas, movia-se em desencontro imperceptível. A exigência da perfeição vinha do couro vermelho das cadeiras, completamente vazias.

Não as enxergava assim. Ficava entre uma visão romântica, quando encontrava o foco e a sincronia, e uma tenebrosa imagem de pesadelo, onde as cores avivavam-se e a música alcançava um ritmo vertiginoso, então caía e praguejava. Da capo.

Chegou à exaustão e nada podia detê-lo naquele momento. Retirou os fones. Faria tudo uma única vez sem a música, sem nada, só.

Ao relaxar o corpo e realizar por completo o exercício, o ensaio pretendido, sabia que enfim estava pronto; até a data da apresentação tudo parecia um intervalo muito grande de coisas inconcluídas, sua obsessão artística ficava clara, e entre aquele que suava nas tardes de platéia vazia e o invejável dançarino sorridente ao final de suas apresentações, havia ainda um homem pleno e conhecedor de si mesmo.

A insegurança sempre existiria, era natural do ser; viver requer mais que os simples caprichos de quando ainda não se é autodidata na vida, assim pensava, assim condicionava aquele período da sua vida.

Aprendera isso, tentar novamente as coisas com uma nova confiança, atrás de grossas cortinas vermelhas, diante do som e do vazio; da capo, até que os sonhos e a realidade se unissem numa única nota e nada pudesse detê-lo.

24 de setembro de 2008

Visão Primaveril

O silêncio dos objetos fornecia a liga para o caldo de emoções que ondulava em seu peito. E ali na varanda, iluminado por um pálido Sol, não havia qualquer inspiração, era mais um dia vazio.
A razão, porém, confrontava-o com idéias e reflexões simples, lembranças das conversas com os outros, os próximos. Seus olhos admiravam o espaço entre o rosto e o chão; arrumava os pensamentos de acordo com o que sentia. Habitava naquele exato momento o devaneio de alguém? Era a razão desse devaneio? Gostaria de ser? Silêncio.

Sabia que os dias viriam rápidos agora, e temia essa urgência dos meses.

Aquele caldo na verdade era um frio e escuro lago há algum tempo e nada perturbava a sua fresca superfície, até que alguém teve a coragem de atirar uma pedra.

De repente, perdeu a imagem mental ali da varanda ao avistar um pequenino pássaro vindo de outros tempos. Ele pousou lentamente... e foi recebido pela brisa quente da nova estação.

15 de setembro de 2008

Dias de Chuva

O gotejo fraco em massa batia e acumulava-se. 
Estando ela ali, estática, a observar da porta a fraca chuva que caía, também não conseguia compreender a precipitação dos seus pensamentos. Provinham da mesma fonte e, aos olhos inquietos da mente, pareciam muito iguais; temores ou alegrias, todos translúcidos com suas imagens borradas na parte de dentro. - Estava louca? - Aguardava ainda as crianças terminarem de se aprontar, mas não estava atenta, chovia e ela observava.

Nada naquela tarde foi muito diferente. Dedicou-se ao trabalho e agora teria de dedicar-se aos filhos. Era uma obrigação. Minutos antes já mantinha esse sentimento impuro sobre eles, simplesmente não estava afim de sair naquela tarde, naquela chuva, para levar os filhos às ocupações do dia. - Deixá-los em casa seria pior. - O problema estava escorrendo dos céus, essa era a verdade, mas vinha acompanhado da data em si. 

Um ano antes, precisamente, também chovia. Porém, a mulher sob o arco da porta, ela mesma, era outra; e também não nutria mágoas-fagulhas pelos filhos. Mas naquele dia estava livre de alguma maneira de si mesma, da personagem que absorvera com o passar dos meses.

Teve um caso - um momento, um dia, horas apenas - com o homem que lhe lembrava absolutamente todos os anteriores, mesmo não sendo muitos. Era um estranho e tornou-se adultério, simples e casual. Nunca se arrependera. Pensava sobre isso, enquanto encarava a água das poças tremulando com mais e mais gotas que caíam.

Ainda tinha o número do telefone.

Os filhos nunca entenderam direito - mesmo antes de esquecerem o episódio anos mais tarde - o dia em que a mãe simplesmente não os levou para alguma aula e saiu sozinha, voltando para casa apenas no dia seguinte. Sabiam apenas que isso fora o marco do divórcio de seus pais.

Ela nunca se arrependeu dos dias de chuva.

30 de agosto de 2008

Noite (sede, e lábios secos)

Veio suave e gostoso como uma brisa morna. No início, apenas no olhar, os cantos abriram-se em outras dimensões, o chão ficou repleto de flor e havia música por toda a casa.

(e pelo ventre subiu-lhe uma vontade, um raio devasso, uma louca paixão.)

Era noite de um dia comum, não, foi madrugada de um novo dia. Mas nada impedia que o céu clareasse de estrelas; enquanto escorriam as horas, o destino conspirava contra, queria atear o fogo da manhã e clarear todas as mentes, mostrar a realidade sob o único e onipotente Sol.

(desprendeu os braços do próprio corpo gelado, úmido. Um passo, aproximou-se, voltou. Dois passos. Tão perto; silêncio.)

O quarto esvaziou-se de cheiros ou cores. Todo ser diante do cinza inodoro libera seus instintos. É mais forte que uma loucura, mais rápido que um susto.

(e os olhos percorreram as tentativas, as chances, a frágil segurança de um igual adormecido. Suspirava.)

Nada se movia; o tempo seguia travado num soluço do desejo. Faria toda a oportunidade, ali naquele momento, se encarassem a continuação dos atos; da peça sem falas.

(de repente correu, mas não tão depressa, despejou a mente, a alma, o corpo, o embrulho de idéias, num único movimento; seco, macio, livre e absoluto.)

Cantaram pássaros. E o mundo inteiro recolheu forças para o giro, rodou penosamente suas montanhas e mares, sorrindo aos que se esforçam contra os próprios receios.

(com os olhos ainda fechados, mergulhou num adágio sentimental, para enfim esconder-se nos sonhos.)

Amanheceu muitas e muitas vezes desde então.

22 de agosto de 2008

Azul

Pensava além. Não havia problema em pensar diante do mar, se há um único lugar onde o infinito é visível, é ali, naquele horizonte céu-mar, a tal reta sem fim que em algum ponto esconde um segredo. Nem gostava de azul - o que era mentira, pois era a sua cor favorita quando jovem - mas podia encontrar os pensamentos todos ali dispostos, ondulados numa mesma bacia, numa mesma jarra fresca e colorida.

Por muito tempo o medo de existir lhe movia para a vida; essa rotina que ocupa a mente sem nos deixar sofrer, exceto quando há angústia na alma, dessas não se pode escapar. Mas vivera até ali algumas vidas, fases ou épocas na verdade, vida é só uma, dose única. Já havia se conformado com todas as memórias, delirado com o futuro, a grande surpresa foi cair em si e enfrentar o hoje; olhando novamente pela areia, mas do alto do apartamento, hoje parecia grande demais, um enorme e complexo momento, porém leve, sentí-lo era fácil, difícil era acompanhar seu ritmo.

Havia muito mais beleza na própria beleza das coisas, toda vez que sorria - e estava sorrindo - procurava por alguém, mesmo que só na cabeça, desejava compartilhar o rosto, uma brisa de esperança que erguia as bochechas.

Sentiu que as emoções agora se identificavam como formigas ligeiras, obviamente sem aquela organização; conforme o seu novo ideal, toda esse organizado modo só atrasava o reconhecimento das coisas, que viessem lágrimas e risos uns por cima dos outros, que vontade e segurança se engolissem na linha de chegada, estava além do fato de ser desejado, tudo fluía para o desejar, sim, desejar! Havia de desejar puramente, enlouquecer, rolar de ansiedade e despreocupação.

Deu as costas para o azul; ali dentro estava parte do dia, deslizaria normalmente através dele, pelo menos enquanto houvesse chão sob os pés.

16 de agosto de 2008

Canhedo Público

A vida não pode ser simplesmente esquecida; não se pode apagar uma história.
Em nossas inquietas mentes habitam as noites, os dias, as vozes esquecidas anos antes. E com elas imagens, fotografias, sequências inteiras das manhãs de uma época; não há corretivo que suprima aquelas palavras trocadas entre os seres.

E vejam além dos sorrisos dos quadros, o horror do artista ao cobrir com o veneno da sua arte, seja ela líquida ou corpórea, uma outra etapa, um outro esboço de um querer.
Ardem ainda em muitos corações as brasas de um teste; vivem ainda muitas pessoas em seus jardins encantados. Seus segredos e suas memórias. Seu único conforto diante da realidade bruta e carnívora que lhe arranca os minutos no ônibus, num banho longo.

Mas eis o passado envidraçado, posto atrás dos olhos; um homem velho ou uma jovem senhora, suas marcas, seus odores, seus aniversários são todos os amigos e inimigos, são a família e os desconhecidos. São colina ao vento; e os sinais deixados em casas, as marcas em bancos ou árvores, a fortuna de um pequeno nas páginas emboloradas, lotadas de desejos e ansiedades de um terceiro;

Vem a catarse, o estranho à porta, e sentí-lo agora é diferente, são outras vidas no mesmo chão, na mesma cama. São rio e lava ressequidos, transformados.
A mulher distante, o jovem garoto; agora sério, agora mística; o casal separado, os irmãos de mesma ninhada, o ódio e o amor, incapazes de reagirem entre si, geram instinto, embaraço, é uma fantasia.

Em algum lugar jorra água de fontes frescas, em outro apodrece a carcaça jovem de um rato, mas ninguém verá; ficam aqui, entre estranhas palavras, segredos, verdades e ilusões de algum tempo que logo ninguém irá lembrar. Vive-se à cada hora um mistério.
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este post é dedicado à Jana Cambuí por suas recomendações ao blog. E ela pode ser lida em O Infinito Público.

4 de agosto de 2008

Anos Difíceis

Poucos sabem como é sentir-se preso, afogado em meio às próprias angústias. Viver com fardos que sufocam as idéias faz parte de qualquer período de grandes mudanças; ela ainda não compreendera isso.

São anos difíceis, é o refluxo de toda uma pequena e importante etapa. Vive-se por acidente, vive-se no perigo constante do fim de barragens, represas tão sólidas de segurança e conforto, tudo acaba. Para ela não fizeram ritos, não colocaram-na trancada durante dias em algum lugar e tiraram-na de lá mulher feita, não. Era mulher só por saber, por fatos e realidades. Mas então e o abstrato? Teria que descobrir sozinha que os dias mudam, e passam, e voam, logo descem pela garganta como avalanche, viriam lágrimas, centelhas de raiva, solidão. Seria quase nascer de novo, sentiria medo de colocar os pés na rua, de respirar o ar, fraquejaria diante de uma simples escolha antes de dormir ou logo depois de acordar. Perderia chances e não iria conseguir consolo com coisas banais como antigamente, tudo agora trazia apenas o sentimento de passagem.

Sentenciou o fim de todas as coisas, menos da própria vida. Amava viver é claro, tinha os seus. Podia a qualquer momento refugiar-se na felicidade alheia e compartilhar a sua dor sem sentir-se egoísta, pois todos fazem a mesma coisa. Todos nós somos uns pelos outros; internamente, depois dos egos, depois do medo, lá em algum ponto escuro há o eterno afeto, uma força que berra e nos protege de nossos próprios venenos.

Tinha agora esses direitos e deveres inventados, essas bobagens, e só tomou consciência de que até agora tudo foi fácil demais enquanto abraçava, aos prantos e aos risos, aqueles seus, aquelas suas; seus melhores amigos.

31 de julho de 2008

Verão

Doces são as ervas no campo; o Sol pleno na terra quente, pois não há temor nos novos dias;
ou há cor ou não há;
Que importa se nem sempre se sabe do futuro e não existe mais o passado? Eis em qualquer canto o presente.

Num embalo, num revolto se vai o que não presta, permanecem as rochas e modificam-se o seixos.
Deixe viver o broto, dê chance ao novo.

Todo desejo é necessário e insólito.


escrito em 17 de Janeiro de 2008.

16 de julho de 2008

No espreguiçar da tarde

Todas as tardes de Sol sob as sombras caseiras; viva e viçosa, era parte do ambiente, suava aos poucos e em delicadas gotas enquanto respirava, devorava os livros e os sons, mas que dias! Julgava-se superior e bela só por não estar sob olhos, causava estranheza o excesso das ruas, mas ali largada e sendo ela mesma sem qualquer casca-fantasia, com a mente completa, aberta e nua diante das próprias reflexões.

Um frio subiu-lhe a espinha, apaixonara-se muitas vezes, e pensava nesses casos e platonices, como adorava relembrar dos sabores, das bocas macias e coladas, tais múltiplas memórias lhe queimavam a testa, eram desejos e rostos; segredos pessoais.

Espreguiçou e agarrou-se no próprio abraço, e vinham chamas de longe, agora fazia comparações e hipóteses, como deixara uns e outros de lado, o sofrimento alheio, o seu. Seguiu além, para antes, dias de tédio, o vazio sem paixões, aquela sua vida marcada de alguma maneira esquecida, resumia-se aos delírios solitários, quando o narcisismo era seu único grande amor. Mas não era? Hoje ainda, não estava divagando exatamente naquele momento, a vadiar solitária em busca de uma história já codificada e engavetada, salvando apenas os apogeus dos anos ou meses?

Calou a voz da consciência. Conhecia bem onde este rumo de idéias a levaria, a um cadafalso plantado em meio às imagens belas que recordava, o outro lado do espelho das pessoas que conhecera, naufragaria numa tormenta embaralhada; sua natureza, um sistema de segurança, o alto nível de cores e satisfações egocêntricas, ou até mesmo o calor dos sentimentos, eram a senha para o início das desilusões.

Logo todas as leves enaltações eram ceifadas pela crua e cruel verdade. Diminuiria-se ali em meio ao foguento do jardim, o Sol desceria, calariam-se os pássaros, perceberia que tudo se rejuvenescia eternamente à sua volta, menos ela, estava condenada a viver em sacrifício para que tudo existisse depois dela, e depois de depois dela.

Segura, reabriu o livro e sorriu ao ler um pouco adiante as seguintes palavras: "Amava o acaso, pois ele é quem sempre bate à porta com uma novidade, uma vontade instantânea, um gentil gesto ou surpresa lotada de todo o sorriso para os próximos momentos de uma vida qualquer..."

6 de julho de 2008

A Mariposa

Não havia nada para ser visto pela janela, não havia interesse por qualquer livro ainda não lido, canais de tv repletos com as mesmas imagens ou sono para os sonhos. Ainda queria sonhar naquela noite? Há tempos não sonhava com fantasias de conforto, a causa provável era o repouso forçado de forma constante; os pensamentos viam todos no fim do dia quando a visão do teto perturbava algo além, algo profundamente inquieto e sibilante, aquele chiado mental por detrás de revisões, mágoas ou sorrisos; caía enfim num sonho preto igual carvão.

Os dias sempre vinham em movimentos, levantar e perceber, geralmente o raciocínio dói nesta hora. Entretanto, a janela permaneceu aberta, e apesar de não se remoer por esquecer de fechá-la, o remorso apareceu de qualquer forma, pois logo aonde estava a vela acesa na noite anterior - no chão, esqueceu-se dela também - jazia uma pequena mariposa.

Por mais estranho que fosse, concluiu que a mariposa atirou-se no fogo por um desejo intenso e banal, morrera, mas... conseguiu o que queria? Percebera o engano em muitas coisas e de repente, viu como às vezes era como a mariposa, voando de encontro à chama, tendo em mente apenas um único pensamento: desejar e sentir as coisas, para então vivenciá-las, nem que fosse uma única vez.

20 de junho de 2008

(meus caros amigos) Carta à nossa!

O diagnóstico de uma vida é feito por aqueles que a vivem. Nesses instantes, típicos, há um recuo da mente para os cantos e nos colocamos num ponto fixo do espaço, numa sombra de escadas e encaramos o presente.
Ora meu caro, coloque-se nas realidades, não perca tempo com os sonhos; uma mente sã e um espírito científico é tudo o que se precisa, o resto é acaso.

A princípio, olhamos de soslaio, buscando imagens, comparando o tempo com medidas cabíveis; onde, como e muitos, muitos 'quem'. Não se aflija. Conhecer os outros, e deixar que eles sigam, faz parte deste pequeno, árduo, porém inevitável processo de viver. Uns ficam mais que outros, poucos são para o nosso 'sempre' pessoal.

Há uma estranheza: satisfação e decepção nos pegam do mesmo jeito, o molde de ambas é igual; são vários os sentimentos que necessitam de uma ordem de utilidade, nós somos responsáveis por esta decisão, ela está nas nossas mãos. Orgulhe-se disso. Outros, no entanto, são rosas com espinhos, aceite-os.
Toda saudade é assim, doce e amarga, bem diferente das azedas mágoas, e tenha cuidado com estas últimas pois levam ao vício; ao papel de vítima.

Por fim, esqueça o que eu falei sobre os sonhos e atribua mais cor a eles com um pouco de esperança, mas sem exageros. Viva completamente; seja.

30 de maio de 2008

Rogoberto, o Porco

Rogoberto era um porco feliz e falante. Claro, todos animais falam alegremente entre si, mas Rogoberto exagerava, não só pelo excesso de falatório, mas também por exagerar em qualquer coisa. Ele provinha de uma linhagem de porcos revolucionários e barulhentos; desta ascendência conservava apenas o barulho e era do tipo mesquinho e egocêntrico. Dizem que todos os porcos o são.

O problema principal de sua personalidade tão agressiva, na visão dos outros animais - oh sim, ele morava em uma pequena fazenda -, era a falta de tato e o descontrole crítico. Rogoberto não fazia a mínina questão de ser gentil se não fosse de seu interesse. Falava alto, xingava as galinhas, as vacas, arrumava intriga com os cavalos, gargalhava dos pequenos acidentes sofridos pelos patos e julgava ser superior a quase todos ali e em quase todos os aspectos. É evidente que Rogoberto nutria um fardo de mágoas e inveja, que nem mesmo ele compreendia às vezes, dos outros animais, e expressava isso aparentando uma autoliberação.

Esse remorso com o mundo vinha principalmente da admiração por determinadas qualidades que Rogoberto observava nos outros. Ele tinha pequeninos traumas pessoais, como qualquer um, mas convenhamos, Rogoberto era um porco. Odiava ter aquele pavoroso rabo enroscado (enquanto o cavalo tinha crina e cauda longas); aqueles pêlos grossos cobrindo sua linda e rosada pele (enquanto os gatos tinha pêlos lisos e sedosos, inveja os gatos principalmente); e acima de tudo: seu corpinho roliço e ligeiramente desajeitado. Este era o seu ponto fraco e, sempre que Rogoberto passava dos limites, os outros animais sabiam como atingí-lo.

O pesadelo pessoal de Rogoberto só veio ficar evidente algum tempo depois, quando ficou claro que ele não havia sido criado para ser um progenitor e só lhe restou comer, reclamar e espernear, e comer novamente, já que ninguém o olharia com olhos de malícia. Sobre ele só recaíam olhares distraídos ou de pena.

É curto o reinado de um porco, mas Rogoberto ficou durante muito tempo só na mesma rotina e diversões curtas, e ninguém procurou ampará-lo, pois entendiam desde o início qual seria o seu destino, aliás só haviam dois; uma restrição óbvia e evidente pelo seu comportamento, ou melhor, pela sua existência.

Não há perdão para os dias de guilhotina. C'est la vie, como dizem na França. C'est la vie, concluíram os outros animais.

4 de maio de 2008

As Ondas

Rebatiam a eternidade, e cada dia era novo, teve esse pressentimento, essa vontade de ter o encanto novamente. Viu nas ondas uma maneira; que importavam os sonhos nesses dias confusos e escuros? Durante a chuva, e mais ainda, durante a rotina, ela encontrava quem valia à pena, quem a fazia resgatar à si mesma das ondas, aquelas coisas envolventes. Com elas, porém, aprenderia sobre o tempo - ah veriam! veriam como ela sabia de si! - e como ele molda a gente, bem como o rio descreve vales, como sorrisos marcam nossa felicidade, o tempo silencia vozes.

Em um desses dias, notaria tudo aos poucos, viveria a dor, questionamentos; um girassol tristonho a murcharia só por sua existência, e perguntava-se: o que há nesta morte? o que há nesta vida? de que me servem as cores das unhas?

Ainda não enxergava além e nem poderia, o processo desmentia tudo, e vomitaria muitas vezes o bem e o mal sem saber distinguí-los; antídotos e venenos, minha querida, são ondas apenas quando se encontra o outro lado do espelho, mas ela saberia, ela encontraria; ela em um novo dia. Ou seu nome não era coragem.

2 de maio de 2008

A Praia

Aquela imagem tornou-se um pensamento esquecido, um esquecimento. Não estava feliz agora? Tinha feito todos esses meses o que mais amava desde sempre, desde aquela vida de loucura, desde o dia na praia.
Havia um vento pesado e quente naquela hora, mas nada parecia atingir o lugar, o pequeno cais acima do espelho d'água, a areia suja de pedregulhos, a vibração de pequenas ondas, não era mar e sim um lago, uma represa. E nada se via além de mato e montanha e água e nada. Mas haviam nuvens, e vento e calor, aprisionou ali alguns sentimentos novos; a infância já estava longe demais para revolver as entranhas, sendo assim, a imagem dela e de outras atirando pedras lisas na superfície para ver quem conseguia o maior número de saltos veio, mas retirou-se rapidamente. Não havia espaço no momento, o foco assimilou apenas luz - regras de luminosidade na fotografia, flashes, a exposição, regras, regras, regras - apenas a luz sobre a pequena praia entorno da bacia fria, pois todo o Sol se fora nos minutos dispersos; sentiu-se perdida, com medo, da onde tudo isso vinha? Por que agora? Praguejou com vontade contra alguém, ou algo, superior ou igual, tentando afastar as nuvens, a fúria, o erro.

O anel, o símbolo, o casamento, jazia no fundo frio do lago e na fonseca repleta de mágoas da sua criatividade, do seu sorriso. Naquela noite, apesar do frio, não vestira calças, ocupou-se em alargar com elásticos todas elas e sentiu o primeiro comichão de uma vida que não era sua.

17 de abril de 2008

Estranho Sedutor

A idéia de controlar o próprio destino, como fazia de fato, o deliciava. Havia em seus olhos pouca malícia, porém um necessitar, uma chama ardente que facilmente confundia os menos intuitivos.

No momento, sentado e vagueando numa mesa de jantar, observava a todos como se fossem coisas a desvendar, na verdade eram, pois poucos o conheciam e apenas aquela ao seu lado, cuja perna esquerda encostava de leve na direita dele, debatia sem dificuldade alguns pensamentos e opiniões sobre assuntos simples: o dia, a comida e a bebida.

Até que rompeu-se a realidade; girando num mundo particular, esqueceu vozes, cor e paladar, isso porque à mesa estava um desejo e desejos sempre remetem a outros desejos, principalmente aqueles não realizados, transfigurados em tristezas flutuantes que se escondem onde houver espaço, nos cantos empoeirados de uma sala, no reflexo de espelhos constantemente vistos, em abraços e rostos. Mas este veio à tona em um leve roçar acompanhado do riso da tal mulher representando felicidade ao seu lado; viviam ambos num presente inquieto e não encontravam qualquer esboço do passado em suas vidas, era nisto que ele pensava enquanto sentia-se absorvido para longe.

Adentrou em um intervalo entre horas, uma contagem invisível e só mais tarde conseguiria entender como se perdeu durante o viver alheio naquela mesa, um inferno na verdade, corroía-o por dentro toda aquela situação tentando alertá-lo da existência impermanente de todas as coisas - gargalhadas terminavam na outra ponta - e levantou-se sem um curto destino certo. Foi para onde supostamente queria ir e isso bastava simplesmente porque poderia ir a qualquer lugar. Livre, não de si, sorriu levemente nutrindo ainda o sentimento de sedução anterior ao desconforto, estava ali para alcançar alguma satisfação com a tolice das pessoas, reconhecê-las por detrás das máscaras bizarras. Esquecia porém do desgaste exigido pela tarefa, uma constante intensidade nas ações que arrebentava dor em seu prazer.

Cansou-se do vício. Até o próximo estranho sedutor sorver inquietude e ele novamente perder-se na hora do jantar.

22 de março de 2008

Palavras Cruas

O Tempo é um estranho.
Mas nada nos impede
de correr
de sentir
de viver

Mas chega o momento do confronto
nos reflexos, nas horas, nos acordes
eis o estranho sobre nós

Acorrentamo-nos ao giro, ao círculo
Descansamos sob a eterna condição
Daquele onipresente, acima de nós
acima Deles; sejam Eles os seus
ou os meus

Perca, use, ganhe, compre
Mate.
Materialize

O Tempo é um estranho
e não há nada entre nós;

Peço aqueles reconhecedores de desejos:
livrem-se
libertem-se
exijam

Não condene, não desperdice
aprisione, mova-se
aja; há tempo

Eis a palavra crua sem tempo,
critérios ou escolhas
há tempo

Há um estranho sedutor.

19 de março de 2008

No Chafariz

No próprio labirinto permitia-se correr, mas não estaria indo longe demais? Desconcentrada, sem posses ou preocupações, afagos vagos, sobreviveria?

O peso da moral, da família, da onipresença; para onde foram todos aqueles que sorriam?

Temia o desmoronamento de seus princípios, sempre tão difíceis de manter, intactos, brilhantes no distante intocado de si, bem ali onde ninguém atingia. Mentira, claro. Todos conseguiam trilhar os atalhos até o pequeno paraíso, começava pelo básico e ía até o profundo; do nada que separa tudo até a alma inconsistente, apanhada num súbito envolvimento; desleixo, descompasso, é a pura sedução. Todo corpo derrete-se em desejos até que só reste uma massa sólida de amargura, que não possui qualquer mel ou licor, é apenas caroço estéril; estava seca. Seca de sentimentos, dor, felicidade ou qualquer coisa que gerasse calor ou frio, vivia sempre um único dia porque este existia internamente; sabe-se que o infinito habita em cada um, pois era nesse eterno hiato, entre respirar e cessar, que jogara todas as suas âncoras.

Agora o conflito. Lembrava-se do passado como quem observa o filtro usado de um cigarro; detalhes comuns, filmes repetidos, noites mal dormidas, todos aqueles pequenos feitos tão mais memoráveis que os grandes; enfim, o normal. Mas veio a onda; a praia, o barco, as flores, nada disso importava, marcou-se a onda.

Louca; perdeu-se na memória, revolvia como água, estacou o desespero, lágrimas, vítima da própria inconclusão, recostou onde podia, 'onde' era público; olhos. Como vivia no presente? Quem era a nova figura em que transmutara-se, porque não ía além? Para onde direcionar a culpa?

Derramou-se no chafariz, na verdade ninguém se importava, o dia era sempre o mesmo, mas através do vidro um pouco distante, e pronto para retomar o movimento, ela encontrou um olhar, e nele havia o par da sua lágrima esquerda.

2 de março de 2008

Domínio

Deitou-se inconsciente. Dominado pela mente incontrolável, só ouvia a vibração, consentia o prazer de algo vivo dentro dele atá-lo; cordas feitas de pensamentos apertam muito mais que as de algodão, sangram os sentimentos até esvair a posse que cada ser tem de si, até que o instinto suavemente acaricie as rédeas, vermelhas de ódio ou paixão, e as puxe.

Não há controle.

Se emitisse um som, não seria palavra, seria voz sem mente; enquanto isso a corte montada lá dentro riria, dançariam entre máscaras de virtude e pecado; eis o inconsciente.
Era ele palavra e ação sem a razão e a lógica? Era ele, tão grandioso e pleno de si, irresistível aos olhos, largado no chão em pleno delírio?

Veio o brilho; sentia-se molhado e sedento, a incrível dualidade, primeiro físico depois psicológico, de mãos dadas, os reis gêmeos pareciam ter concordado um com outro. Levantaram o corpo.

Não mais desejava aqueles momentos, somente os que poderia gozar perfeito de si, num falso descontrole, feito na forja da impaciência ou da ilusão.

Ar era ar, e dele, faria vento.

22 de fevereiro de 2008

O Rapaz e a Vida

Desconhecia o poder das palavras diretas, únicas e seguras. Sentia o medo cozinhar logo abaixo do estômago, subia-lhe e tirava-lhe o fôlego.

Quando absorto sob o Sol, observava de lado a cicatriz, era marca, logo significava. A cicatriz, pura metáfora entenda bem, não mais incomodava, pois corte não era, obviamente. Porém, ainda significava.

E havia tanta coisa, a vida tomou-lhe a tapas a insegurança e arrumou, como uma grande mãe protetora, seu uniforme, seu padrão embaçado, uma mistura de ingenuidade e frescor, algo assim, mais ainda deu ao insólito rapaz algumas razões, uma certa falta de arrependimentos e capacidade múltipla. Para o recomeço, estava ótimo.

Porta à fora o dia raiava, em cada pedra, cada planta, o destino incerto parecia um mundo encantado, Alice invejaria aquele sentimento se fosse real, mas seria ele, agora também, apenas fantasia? Não se perguntava; a questão viria mais tarde dos outros, muito natural, estaria preparado para isso.
Sobre as próprias pernas era Rei, e reinaria por espontaneidade, por ter nascido para isso, para a sua vida, e pela ambulância de seu reino na vida dos outros.
Num novo dia de deslumbre deu-se conta de algo de antes. Então a vida correu, jogou-lhe todas as distrações possíveis, ergueu muros envolta de todos os pensamentos, enxotou cada praga do jardim das delícias, e achou que estava tudo resolvido. Mas a vida não podia deter o choque, o rebalanço do universo, o grande e egocêntrico Destino logo veio serelepe, ironizando a pobre vida, desolada e aflita, teve que usar o único remédio que também era veneno: a caixa de lembranças.

Neste dia, o insólito rapaz caminhava e relembrou por culpa das palavras, e quase sentiu que o corte se reabrira, viu nitidamente a causa. Estranhamente, não deixou-se amargurar. Ele apenas apoiou-se no que podia e seguiu.

A vida, apesar de receosa, endireitou-se após o abalo das lembranças. Era preciso conviver com elas.

18 de fevereiro de 2008

Doce Pesadelo

Entre os fios e lençóis habita a inquietação. Muito além dos primeiros encantos de Morfeu não se pode controlar o abuso. É a permissão do consciente, ao relaxar os mil braços, um incesto com a inconsciência?

Então os românticos permitem-se dar boa noite e sorrisos feitos à dedo para o teto; logo mornas decisões sobre amanhã fazem par com as marcas sendo criadas nas horas fantásticas.

Mas em choque estão os desassossegados, se embrenhando em mais algum doce pesadelo, alguma memória ou estação de trem; corpos fotografados, insignificantes detalhes, um campo vazio e fantasioso, mas um lugar estéril de inspiração, pois todo sonho e todo pesadelo já é uma peça montada. Não há tempo nesse ambiente, vive-se numa outra dimensão, exclusiva e íntima.

Faz a hora a imaginação; montada na incoerência, um cavalo alado, sobre todos os dias, todos os problemas; o lado b da tensão rodando e imprimindo, secretando de uma fonte inesgotável vivências nas entrelinhas.

Na aurora todos os arrepedimentos se fazem presentes, pois cada detalhe e cada imprecisão ganha corpo e voz, arrancando a fantasia, evaporando-a para fazer de ti apenas memórias, apenar dor e felicidade; desejo e decisão.

Para onde vai a razão quando se foge ou quando se busca?

11 de fevereiro de 2008

Desordem

Além da vida irregular e explícita, existiam sentimentos. Não estavam, obviamente, naquelas noites perdidas sozinha, nem nos dias na rua; em horas exclusivas para o mundo. Levantava e vivia, basicamente.
Mas através dos cachos redondos, cravara-se um momento, um específico; a época em si, esta em que todos falam demais, onde não se aprecia a arte pelo prazer da análise, mas só, e somente só, para o agrado da sociedade entorno, para fazer parte da moral e dos bons costumes; hoje é até permitido colocar um pé além do limite e soltar um riso infantil, antes não. Não, não era isso, existia além do meio, além da incansável rotina, que parecia estar esmurrando-a, não esmurrando-a, mas como viver com alguém que lhe retira os anos aos pouquinhos, como se bebe uma taça grande de vinho, sim, exatamente, era o sabor da vida, amargara em algum momento; naquele momento.

Ela sabia. Compartilhava de uma forma restrita, indócil, achava tudo uma grande merda, para minutos depois despejar paixão na última dança; irresistível. Sonhava apenas com a chuva e com o fogo; o leve e o intenso, juntos, para compor uma única dose, que ainda não experimentara, onde poderia encontrar a combinação tão bem retratada por sonhadores; desejada e suada por insônes amantes; 'por favor', diria, 'é preciso estar quente, porém fresco'; uma comparação estúpida com comida, mas a vida não era isso? Depois de tudo? Comer e beber, e transar?

Não. Para ela a vida era uma representação crua do amor, do ego e do ódio. Só os três poderiam parir tal desordem que é o ser humano.

8 de fevereiro de 2008

O Sem-alma

Então o ar lhe foi retirado por ser puro; por ser ar.
E toda materialidade que lhe era dada não passava de expurgo, despejo, eram luxos não mais desejados; velhas bonecas russas.

Vivia em si, num corpo morto, numa mente vazia, onde cada demônio poderia habitar; cada doença cobriu-lhe de chagas e comeu suas vísceras.

Uma vez condenado, transformou-se em fantasma. Não era mais luz, nem escuridão; sua existência e sua não-existência eram ambas verdadeiras. Ainda constantemente violentado nesta condição, deixou-se; na verdade o que restava deixou-lhe.

Sabe-se apenas que o primeiro e o último suspiro da vida de um homem são seus únicos lampejos desbrilhantes de vida e de morte.

31 de janeiro de 2008

foi você que cresceu

Não há cartas, telefonemas, pensamentos expressos ou sensações; via e a desilusão ainda não era compreendida. Não era muito inteligente, mas havia sacrifícios internos em prol de uma melhor imagem, de um comportamento mais controlado; uma dedicação cansativa, uma chama que se extinguia aos poucos, esvaindo-se contra a vontade. Certas vezes a consciência toma as armas da sua mão deixando o corpo vazio, apenas vivo por um piloto automático, e as falhas são consertadas por procedimentos-padrão; e a luz retorna, acende devagar, e os olhos não reconhecem as paredes internas, não percebem que os níveis estão estabilizados, que os números somaram-se, que as pernas aguardam ordens.

Levante-se. Receba as carícias da manhã negligente, foi-se a vida ontem e hoje não há nada mais que uma única chance de aprendizado; desculpar-se é uma motivação robótica, é uma obrigação, não para conforto mental, mas sim para amarrar a boca do saco de larvas e sentimentos.

Eis o vento e com ele o soar de um telefone, uma nova mensagem.

- Menino o mundo não mudou tanto, foi você que cresceu.

Apenas o Sol justifica tudo isso, aquele sorriso repuxado de lembranças.

21 de janeiro de 2008

Línguas de Faca | O Picadeiro

Óbvio ninguém entender como as coisas ocorrem; atrás de um palco sempre há a regra básica da disciplina jogada pro alto, no momento errado tudo sempre está fora do lugar; para dar vantagem ao jabuti, basta elogiar o coelho.

Mas eis aqui a parte tragicomédia da coisa: a fala. Naturalmente o poder das palavras é muito mais evidente quando soa, vibra, atravessa carne ou pedra; e é correto afirmar que os homens de boa vontade nunca sabem usá-las, nunca dominam o dedilhar, a segurança aracnídea da coisa, não, a justiça é gravada nas mentes alheias pelo som, como já foi dito, atravessa a carne.

O grande mérito é daquele que sabe ouvir a seu respeito, afirma todas as verdades, varre todas as mentiras, e ainda assim está disposto a afiar as línguas, sejam as boas ou as ruins; o fio é necessário, tolos são os atiradores de faca que não exigem da sua dupla um filete à mais de coragem e confiança, ou os que não amolam as armas por receio, pelo sofrer antecipado. Estes atiram apenas plástico contra a solidez, contra o fogo; de que adianta choramingar e semear a inquietação se não se aprendeu a moral da história? Se só se vive de uma mentirinha em cima da outra, ou se a única empolgação da vida é saber o que ocorre na janela do vizinho?

O picadeiro tem dessas coisas, virtudes e perigo, mas só sabe lidar bem com isso, e com as pessoas, quem já foi atração de circo e não se deixou levar pelo orgulho, ou caiu do cavalo e riu depois.

Nem toda criança gostou de palhaço; nem todo palhaço viveu só de palhaçada.

18 de janeiro de 2008

Alice

Alice dedicava-se à leitura agora, à leitura e ao calor morno; palavras de um livro eram mais livres que as faladas, saídas de bocas, presas à mente. A mão apenas transcreve direto sem o filtro do som, sem o confronto do olho humano. Alice não tinha mais vícios, pois a vida a ocupava além da conta, da liberdade tátil de copos ou fumo, estava plena de si, viciada nos próprios sentimentos, louca-serena; um anjo de asas alvas intrigado com os pecados humanos; estes tão vastos quanto florzinhas amarelas no campo de viço verde.

Mas Alice só podia agora acalmar-se com personagens que só vivem em pensamentos, só encarnam na mente alheia, sem ela são apenas fruto vazio da inspiração; apenas nomes e angústias e desejos no papel. Ela era isso, sentia viver como eles (esses nomes), não como heroína, não; heróis são tolos demais, perfeitos demais, não possuem o que é mais apaixonante na vida real: o cotidiano, a mesmice, a vida como ela é; mesmo quando o têm, é repleto de falsidade, e Alice reconhecia seus comuns no papel quando via todas as coisas juntas, toda a desordem existente; ora interna em conflitos e paixões, ora externa no barulho e no silêncio, seja das vozes (essas nunca mudas), seja em fatos, nos movimentos alheios a nós.

Saudade é uma palavra única, e ela compreendia seu sentido quando tocava os próprios lábios, ou quando deitava-se tarde com um livro.

6 de janeiro de 2008

Perdas e Danos

Pura estima, agarrou-o pelo coração e apertou até doer; era mais que um desejo do possuidor, mas com esse seria diferente. Analisou seus desejos corrompidos, suas mágoas, uma a uma, sentiu o que mais gostava: o instinto de vítima.

Cigarros, cinco no maço, três no cinzeiro, nove pela janela. O resto não participou do show particular. Não desistiria, riu algumas vezes, e antes mesmo de chamar a vingança, tinha elaborado o plano.
Constatou que o que não possuía, havia perdido. Então sempre que conseguia algo, sentia um alívio de resgate e não de conquista. Errado, porém menos pretensioso, já que o alívio era direto, e a conquista apenas puro orgulho. Isso não bastava.

Ela apoderou-se e viveu por ele. Tinha ainda muito o que fazer, mas seus braços davam conta do resto do mundo, com aquele precisava estar por baixo da pele.

- Conte-me um segredo. - não podia. Não devia. Disse mesmo assim.
- Vou me vingar de mim. - foi claro. Deixou-se acumular, dias embolados, pensamentos, espinhos; cravejaram cada delicadeza, calma e cada noite.
- Como? - não queria saber de fato, apenas reconhecer. Seu dever. Seus honorários. Basicamente isso.
- Veja bem, não se deve amaldiçoar o mundo aos berros por suas perdas e danos, compreenda - aí é que estava a sua realidade, a verdade saiu pela boca facilmente - a culpa é sua.

A vingança chorou lá dentro, retirou-se; nele estavam todas as estacas de segurança, cada broto firme ao Sol, nele estava sua pior inimiga: a coragem. Mas como podia a coragem ser inimiga da vingança? Simples. Vingar-se de si, não é vingar-se de fato, não do jeito que a vingança direciona. É a coragem que faz a diferença, ela só existe nesse tipo de vingança, nas outras, nas reais contra outrem, vive o antônimo, dança a covardia.

- Eis o progresso. - a analista sorriu, não pôde conter. Quando o serviço fazia efeito... sorria depois, mas com este era diferente.
- É, talvez. Pelo menos a ordem está melhor. - retribuiu.

E estava de fato; estava mesmo.

2 de janeiro de 2008

A Casa Novelha

Cheirava a tempo. Afinal foram dez anos sem vê-la, sem pisar ou dormir naquele lugar. Algo entre os tacos no chão e as coisas atrás da tinta seminova da parede respirava. Vibrava de leve, não eram os encanamentos do segundo andar, ou microterremotos da rua. A rua era quieta. Eram apenas lembranças, um punhado considerável.

'Parecia maior...'

Cinco portas na sala, portas nubladas, paredes brancas, quantas entradas? Três. A nova velha casa, ou a casa novelha como fosse, parecia ter perdido um certo brilho.
Não há tantas flores no jardim tomado pelas plantas, o portão emperra, e ela viveu dois anos vazia, e foi justamente nesses dois que envelheceu dez de uma só vez.

Logo vieram as caixas, veio o presente morar no passado, ainda com nacos daquele tempo, mas naquela primavera tudo era bem diferente, tudo movia-se pesadamente para o pior. Neste verão existem é claro algumas dúvidas, algum desgosto, mas a casa vive, e seus 'antinovos' habitantes (ou quase habitantes) sabem como lidar com isso. Na verdade, inconscientemente, ninguém nunca saiu dali, ali foram os anos mais longos para cada geração. Ali nasceram os primeiros medos do mais novo, as incertezas da do meio, e a semente de refúgio da mais velha.

Assim trouxeram consigo o relógio que só tocava naquela casa, o real e o metafórico, ambos para despertar todo aquele lugar, cujo destino era insólito até agora.

Sorriu desajeitadamente e suspirou, enquanto a casa bocejava.