17 de fevereiro de 2014

porcelana

Eu não havia reparado o olhar ansioso de Silvia quando ela entrou no quarto provocando pânico numa pequena lagartixa. Metade de sua blusa estava úmida - ela havia lavado a louça - e a partir deste fato eu compreendi que seus poucos minutos de trabalho na cozinha criaram expectativas sobre a nossa iminente conversa aquecida pelas sombras quentes do abajur.

- me conte - e ela deitou sobre a cama, tirando o sutiã sob a blusa, como uma adolescente - como ele é?
Não era possível iniciar uma descrição simples, eu sabia perfeitamente disso, e enquanto ganhava tempo ligando o ventilador - o ruído baixo me ajudava a pensar - a imagem de um vaso de porcelana ricamente desenhado me veio à cabeça: belo, íntegro: único. - absurdamente frágil.

- ele não tem personalidade própria - resumi. e internamente eu ainda visualizava Caio como o vaso de porcelana, fazendo sentido unicamente em um mundo de experiências e convívios muito particular, o qual eu não me via compartilhando.


Ainda que eu tenha condensado os detalhes, e começado de maneira determinista, Silvia alongou os dedos dos pés e, olhando fixamente para os lençóis, foi direta, o que significava que tinha entendido o cenário:
- bom, você é melhor do que isso, digo, por que está com ele? Há algo de errado com sua autoestima? - e riu. 
- talvez - eu sorri. Silvia era uma das poucas amigas com quem eu não precisava me armar de argumentos ou atalhos nos diálogos, não havia culpa ou remorso, jogávamos quase sempre com a verdade.  Isso ficou claro quando eu tentei uma desculpa esfarrapada.

- você sabe, eu ainda... não sei se sou capaz de sentir as coisas como antes
- que besteira - ajeitando a franja com um suspiro - não acredito nessa de ficar sofrendo ou remoendo o passado. acabou, não acabou?
-  acabou. - e o teto do quarto parecia aqui um pouco mais distante.
- a vida é uma só, não dá pra perder tempo com isso. mas, você sabe, é no conforto que a gente se sabota, não há nada de errado em conquistar temporadas suaves, aliás é pra isso que estamos aqui, não é mesmo?, só não dá pra dar uma de Buda e ficar embaixo da sombra esquecendo que o negócio é evoluir, seguir em frente. - mais do que nunca, ela me pareceu alguém no final da adolescência e não uma mulher com mais de trinta anos.

Eu fui dormir pensando em "temporadas suaves"; em mim ainda criança fazendo uma daquelas experiências bobas com uma semente de feijão, uma caixa de sapato, algodão e um pouco d'água. Eu fazia furos na caixa que pudessem ser fechados outra vez e, quando notava que a muda estava quase conseguindo sair por um deles atrás de um pouco mais de sol, eu fechava o furo. E assim sucessivamente, até que o broto definhasse.

Silvia dormira rapidamente enquanto eu sentia que iria acordar mais uma vez resmungando que a luz da manhã não era bem aproveitada naquele quarto tão bonito.