27 de dezembro de 2012

cocar

seria possível fugir de tantas vozes nas paredes em tom pastel do metrô? e deixar-se guiar de olhos vendados de ideias, dispersos, esbarrar em um brinco no chão, esquecê-lo e lembrá-lo horas mais tarde - não peguei o brinco, quem pegou o brinco? - e do brinco passar aos anéis e lembrá-los nos dedos e em cada dedo uma mão que tocou-lhe diferente; quem?

Olívia, o carnaval exige mais do que o calor e o grito alto do seu nome em meio à multidão, o encontro dos outros e das coisas no chão; Olívia veste seu avatar de índia, morena assustada, não busca ninguém, observa e atravessa sem sentir que sorri ao vê-lo; quem?

e este zumbido do mar, do tambor, dos chinelos arrastando fantasias, homens e mulheres, cães brancos, alguém berra e alguém repete, comemoram o desencontro e os reencontros; Olívia segue, finge que procura algo na bolsa, quer ter mais tempo para si, quer encontrar na bolsa o caminho por onde continuar seu raciocínio, tenta evitá-lo - o rapaz que segue ao seu lado - mas não pode, ele rouba seu cocar, dança; alguém grita: Olívia!

Olívia abriga-se na índia, mas sem o cocar está exposta, fragmentada e o vê claramente - o rapaz à sua frente-  antes de; quem?

22 de dezembro de 2012

pondera

nega-me o prazer
fera indomável

nega-me a verdade
esfinge inabalável

nega-me a delícia
de ser eu
de morrer outro

pondera, sátiro
sobre tua pressa
falsa promessa

pondera
que é ninfa tua vontade
mas de cinza é feita
tua brevidade

e engoles os frutos
sem conhecer o sabor
também os putos
sem cuidado e pudor


pondera, carinho
amarga a manhã
em tua boca

guarda o beijo
atrás dos dentes
sob o travesseiro

junto ao outro
moço reluzente
a sorrir, sozinho






olhos roubados

roubaram-lhe o cheiro
o suor, a coragem
roubaram-lhe os olhos
não me encaras

roubaram-me o lugar
o reflexo no espelho

e sonhei teu sonho
teu rosto
lotado de palavras caras

para que não encontrasse
na manhã
certeza dourada
ou silêncio

e bebi da tua água
e cuidei da tua louça
importada, rachada

à quem revelas sorrisos?
sinceridades, suspiros

à quem oferece os nós
dos teus sentimentos
e afinas - a sós - o violão?

amemos, eu não

28 de novembro de 2012

César

levado pela destruição; destituído
desencontrado, jamais perdido

devora a serpente, infeliz
saliva a mágoa em minha boca
em nosso encontro feito de giz

dentro da sua armadura,
(te orgulhas?)
desonesto, finges o afeto

devora a serpente
engole o veneno
despeja as memórias
esqueces de ti, valente

a verdade é noiva do destino
e sua boca fará da violência
um diamante, um vestido

(...)

vá!
faz do meu rosto
conhecido por ninguém
caças um corço
ganha teu vintém

mas vá!
que teu pecado é segredo
e somente a aurora saberá
da ferida, do meu desejo.

11 de novembro de 2012

breve sonho num campo de flores


sonhou com um deserto que era feito apenas de flores; o nada no sonho era uma coisa só e a ausência uma presença absoluta.

perdida, procurou-se em meio as flores; os pés, os braços, estava ali, cercada de um cenário que nada lhe dizia; solta, livre. perdeu-se mais ainda.

e por horas viu-se muito, muito desencontrada com aqueles caules verdes e o tom rosa claro em contraste com o céu muito azul; estaria doida? não lembrava de ter - quando acordada - tomado nada que não fosse a água meio quente da garrafa; e encontrando a garrafa de água meio quente dentro deste sonho, encontrou também um escorpião vivo sobre a tampa.

lhe faria mal o escorpião? e o que ele fazia sobre a tampa da garrafa de água meio quente e não no chão ou nas flores? ocorreu-lhe que o escorpião não é um inseto e subitamente sentiu-se jovem e violenta.

tomou para si a garrafa, e viu o escorpião correr sobre seu braço e encará-la de cauda erguida e pinças abertas;

não foi a dor do ferrão sobre a pele ou a água a escorrer pelo seu rosto que a despertou daquele local tão estranho, mas a nítida sensação de que alguém a observava muito além. um outro lacrau, talvez.

4 de outubro de 2012

andrômeda


happiness soava a língua ao enxergar a palavra e um fio seguia veloz entre os murmúrios baixos das suas ideias; Ângela ergueu a cabeça para o teto, admirando o ventilador - estático - e entregou-se à uma roda temática interna sobre a sua felicidade.

a felicidade, um mar aberto, um sentimento trocado, uma noite quente; pequenos objetos, uma lembrança fosca, editada pelo conforto ou pela mágoa; esse imenso conjunto de gavetas semiabertas que deixava brilhar aqui e ali, tesouros que guardara ao longo da vida; assim contava o tempo, não em anos, mas através de uma constelação de detalhes esfumaçados.

sorriu quando teve a suspeita de estar ao centro de si.

22 de setembro de 2012

à francesa

achava muito apropriado que a tromba d'água viesse num momento como aquele, estava até mesmo satisfeita pois o acaso da natureza casava perfeitamente com seus fetiches de meio de tarde; mas estava correta, reta, o queixo pronunciado, limitada em sua função, presa numa crisálida de rotinas e horários: hoje teria meia hora, amanhã e depois - por Deus, até mesmo depois de depois de amanhã! - centraria os esforços em manter o "não há nada de errado" em seu próprio ninho; mas que maldade me fazer esperar tanto tempo, pensou, agitada, frenética, não era mulher de respirar pela boca por homem nenhum, muito menos por garoto;

ele veio, meio torto em suas pernas suadas e tênis coloridos, sem anseio; cheguei, e desviou os olhos pro lado feito um cachorro, procurou as palavras, mas ela tinha pressa, ela tinha necessidades e horários; já estava só de relógio, escrava das próprias enrascadas - desde sempre, desde pequena e burra a esquecer as bonecas por aí, e lembrá-las sem mágoa, perda reparável -  comeu-o por inteiro, esparramou-o pela mesa, faminta de si em perigo, mas completamente ausente de conservadorismos que - é verdade - às vezes tinha.

cúmplice, a chuva virou enxurrada, ensurdeceu as paredes, transbordou os minutos e cantou os trovões junto aos sussurros daquela coisa toda que acontecia; e quando veio o silêncio, ventou uma brisa muito fresca, talvez a mais fresca daquele dia, gelando no corpo o suor que já secava dentro das meias e do vestido; nos falamos depois, sim, um beijo e estavam outra vez esticados pela corda longa da rotina.

22 de agosto de 2012

Redenção

meus olhos castanhos abriram-se para o céu, cegos pela vida do Sol eterno, da luz perpétua; olhos insones, brilhantes esferas incapazes de admirar a luz das estrelas

meus olhos eram incapazes de ver o passado.

este manto frio que é a noite quando na condição solitária não caiu sobre os meus afetos; eu segurei forte nas coisas que acontecem somente após o amanhecer, embora todas elas estivessem ainda - e sempre - adormecidas quando delas necessitei.

houve um trânsito, uma lua escondida atrás de outra lua escondida atrás de um planeta; o tempo uivou baixo, atravessou as folhas e as persianas até que a verdade respirou fresca perto do meu rosto.

11 de agosto de 2012

carta de aniversário


Estela, querida, te peço perdão por escrever. Segurei o máximo que pude, mas já passa das onze e não aguentei. É muito emocionante passar pelo aniversário da única pessoa que amei sendo compreendido e gostaria de te desejar a maior das felicidades.
Sabe quando você não consegue se imaginar mais feliz? Eu também não; mas no dia que cheguei mais perto disso estava contigo. Nem preciso dizer qual foi este dia.

---
Não precisava. Todo o tecido da felicidade de Olavo estava esticado sobre um único dia, ligeiramente estranho aos afetos de Estela, mas compreensível - este papel importante que a compreensão teve fora também um sacrifício.

Acordada de uma noite difícil - da primeira noite juntos - requentava o alívio de ter a suposta ideia de recusa trocada por uma longa e delicada discussão; permaneceu decidida a encontrar respostas, precisava delas, não podia se sentir ridícula naquelas condições - nua num quarto artificialmente frio por um antigo aparelho de ar condicionado - e não podia se expor, deveria virar o jogo dos argumentos para trazer à tona verdades que Olavo escondia como um menino esconde um jarro quebrado da mãe. Sentia-se tola, queria ir embora - ele não permitiu, ofereceu, mas não permitiu e essa prática dúbia tornou-se diária desde aquela noite - tinha feito algo errado; na verdade tinha acertado tanto que só poderia ter recebido uma leva de má sorte nos resultados; 

- mas é isso?
- é.
- então não...
- não, não é você. óbvio que não é você, não dá pra ver o estado em que eu tô?

e esvaziou essa memória ao som de talheres e pratos estalando na cozinha, uma manhã branca, com um céu ondulado de nuvens que pareciam os contornos do pé direito do quarto; Olavo preparou todo o café da manhã, estava sorridente; estava satisfeito. E em meio a xícaras e possibilidades, achou que estava distante, que a mesa os dividia, sentou-se mais perto, abriu o jornal, sorriu. Bebendo deste alívio, Estela despreocupou-se, encontrou as próprias mãos quentes outra vez e naquele momento deixou-se enebriar por um certo conforto que muito tempo depois descobriria ser um véu a amenizar seus sentidos inseguros;

àquela época não poderia saber, mas era normal que os lençóis ainda estivessem frios quando

- escuta é chato falar isso, mas você precisa ir embora.

as paredes mostraram, pela primeira vez, suas longas costas.

---
Pois bem, dias como aquele virão com carga redobrada pra ti. Não preciso nem desejar, é certo. 
Falando em felicidade, sua planta está linda. Parece que fica à espera do nosso amadurecimento. 
Enfim, aproveite o resto de aniversário. Espero que no próximo eu possa ao menos comprar um presente e entregá-lo em mãos.

beijos e parabéns.


7 de agosto de 2012

brincar de sombra


brincar de sombra com o que eu não sei

calor, carinho e luz

desconhecido à rodear
as barras do meu vestido

dançar sob o Sol
rir

dizer adeus
adeus, moço
adeus!

26 de julho de 2012

boa noite, meu bem

andar na praia, te encontrar
rever o meu destino, que nem sei
estrada, avião
chegar e fugir
das suas lembranças, sempre

mas te encontrar
sólido sobre a areia
e, hesitante, não olhar, não gritar
- ei!

e vestir um sorriso, largo
que sobra nas bordas
onde tropeço

esquecer os planos
acabou-se o dia
acabou-se a luz

e no seu silêncio me refaço
daquilo que sobrou
logo antes, logo depois
d'eu imaginar um beijo
e de tudo ruir
ao boa noite, meu bem


22 de julho de 2012

noites de terça

me pergunto o que houve conosco, Olavo, separadamente; sentada aqui no meio da tarde, em silêncio, tendo a concentração roubada pela sua inoportuna ausência (e a certeza da sua distância), como se você mesmo viesse ao meu encontro e, de súbito, me beijasse o rosto.

- levantou os olhos do livro, sentia o vapor fresco da água da lagoa subindo pelas frestas do deque. -

e perco meus valiosos minutos - só agora sei o valor do meu próprio tempo - com essa corda desafinada que abala a harmonia dos meus pensamentos; me dou conta, enfim, de que estou cercada pela desordem do cenário em que me encontro: inúmeras crianças e cães, campainhas de bicicleta e, é claro, o retumbar seco de um passe de bola: a inevitável lembrança das suas noites de terça arrancada no susto do

tum, tum; porra!

você está aqui, Olavo. você permanece. e eu, onde estou?

17 de julho de 2012

Sobrevoo

essa enorme distância entre as horas, essas inúteis anotações; o frio asséptico de cabines: um toque no vidro e lá estava ela; morna, desajeitada, a visão completa da fé embaçada que o Olavo possuía no afeto humano, uma certeza turva, pesada; uma âncora negra que o fazia submergir onde não queria.

não procurava as respostas, não se permitia; jogava com as mentiras um passatempo qualquer, riscando palavras nos livros, inventando rachaduras na rotina - colecionava desavenças baratas - e esquivava-se como um cão de rua raivoso da possibilidade de soletrar mentalmente qualquer coisa que fosse uma pétrea verdade sobre aquele assunto; sobre eles.

você, Estela; eu, Estela.

nós, Olavo; suspirou enquanto observava o céu - um bloco de mármore imundo - criando uma rápida nuvem de vapor; voltou os olhos ao nível da rua, quieta e alongada, um cenário à espera.
seu corpo agiu de forma estúpida, indo de encontro ao chão, à sujeira e, mesmo sem dor, Estela rompeu sensível sobre o asfalto, chorando.

quis vê-la, encontrá-la, por alguns minutos olhou pela janela com este sentimento, mas não havia nada, nem nuvens, nem estrelas, era noite apenas; algum lugar sobre o mar.

13 de julho de 2012

5:55

tantas vezes amáveis um com o outro; insones em doces carinhos, um a um em cada canto, um abraço, reabraço, envolvidos no silêncio daquilo que desejavam dizer, mas que nem as paredes ouviam; e por mais que fosse inverno, o quarto tinha o aroma quente e suave do afeto.

cedo vieram a manhã e a inquietude de Estela, que não era mais inquietude, mas resignação, vitória consciente, mas que os instintos, as vontades, botavam a perder.

- essa sua vida, você está gostando dela não é mesmo? - quase bêbada de sono, cuidadosa, propositalmente infantil.
- menos do que eu gostaria. - riu.

revirou-se, olhou o teto; Olavo fechou o cinto fazendo soar as argolas da fivela, marcando sua independência em relação à Estela, uma acorrentada liberdade de obrigações cujos benefícios lhe traziam novas experiências paralelas;

de repente os motivos de Olavo ficaram óbvios, Estela os reconhecia, douradas motivações contrárias ao elo de pertencimento alheio: o vigor da juventude à luz de um futuro incerto, o sabor das conquistas, movidas pelas eventuais recusas, a prática da valorização do ego; toda a esteira de argumentos masculinos, abotoados um por um enquanto Olavo fechava - de baixo para cima - a blusa xadrez vermelha; e pensar que não era ainda metade do que poderia ser, e que quando se conheceram, os dois, não eram metade do que eram agora.

Estela entediou-se na maré cheia da previsibilidade dos pensamentos acerca de Olavo, cansou-se; fugiu aos poucos enquanto tentava explicar o que já sabia, mas não aceitava como completa verdade.

trocaram um beijo. 
calaram-se.

10 de julho de 2012

23

ele escreveu o nome dela e parou.

compreendo; desejo; desculpas; era esse porvir; para mim; eu; eu; 

repetia-as para si - as palavras - quando envolvido numa resposta, escolhia-as entre muitas coisas banais do cotidiano e logo fatigava-se... na terceira ou quinta linha "já está bom";

a resposta não era um cortejo, uma tentativa, uma nova chance... a resposta era uma exigência; demanda.

uma linha.

(nada ia mudar)

estalou as costas com um gemido baixo, levantou-se: ainda tinha que ler o jornal.

8 de julho de 2012

sanguínea

eu esperei, Olavo, por horas na escuridão; escolhi a melhor das desculpas para ir dormir cedo: uma leve dor de cabeça que, no fundo, não era nada, mas servia de apoio ao meu desespero tal qual muletas para um aleijado; e assim permaneci, presa aos detalhes da noite - os cães, a ausência de brisa, os vizinhos chegando um pouco mais tarde que o normal - vascularizando minha esperança de redes finas de pensamentos; lembranças nossas, dias ensolarados - a paixão é sempre dourada de Sol -, mas também de venosas imagens inventadas: onde você estaria? e com quem? em infinitas comparações entre o que você faria comigo e com qualquer outra pessoa.

qualquer outra pessoa, Olavo, estava - de modo quase tangível - em melhores condições com você do que eu na minha imaginação.
com elas você dançaria, sorriria, saberia receber carinhos súbitos e retribuí-los; as levaria - pela mão - de um canto ao outro e deixaria se envolver no jogo sexual que um par exige, não porque quisesse, mas por que sabia que se apresentasse alguma primeira resistência todo o resto estaria perdido. Não é absurdo? que desconhecidos - quase plenos - possam circular nas fronteiras da sua confiança de modo livre, ativo, sem temer a sua rispidez infantil e o desprezo da sua falta de atenção?

mas, eu

Estela não sabia o que dizer, não conseguia verbalizar para si o inverso das cenas que montava, ainda que elas fossem muito mais reais, pois era a protagonista desses momentos; via-os como quem vê o próprio rosto na superfície de um lago e, confusa, abstraía todas essas imagens - reais e inventadas - de uma única vez, crente na razão obscura das coisas que a deixavam insone por algum motivo inexplicável naquele momento, mas - não tinha dúvidas - para fazê-la chegar ao seu próprio destino, para que pudesse enxergar um pouco mais o caminho.
Com os olhos fixos e os lábios abertos, Estela era um peixe; imersa em seu aquário de fantasmas, não mais uma mulher, mas a pura manifestação do seu inconsciente; até que alcançou o sono, amarga e tranquila, mas segurando os sonhos em rédea curta.

pela manhã o destino não lhe traria nenhuma dica; o dia estava cinza.

5 de julho de 2012

Leme

tantas vezes estive no Leme, na areia; você sabe, preciso desses tempos e desses lugares para encontrar alguma clareza dentro de mim, ainda que ocupado, eu sei - não largo o jornal ou aqueles tantos livros que leio - mas é meu estilo de botar a cabeça para funcionar.

nós sempre vínhamos ao Leme por algum motivo estranho, gostávamos tanto da prainha, do porre que era dirigir até a prainha, pra ficar lá só uma horinha; com você a praia era sempre curta, mas também essa sua mania de ficar com cara amarrada, eu achava que era tortura te deixar lá plantada numa canga horrorosa, sorrindo reto;

era amor, só agora eu sei; e mesmo estática você estava feliz, nada poderia me dizer isso na época, só esta lembrança dos teus olhos - estes sim, sempre vivos, sempre sorridentes - fixos no mar...

- fala alguma coisa.

e o par me espelhava num giro suave; e você, bom, você nada dizia; 

acabo de ver o mar e é em ti que estou pensando.

1 de julho de 2012

bonita

Amava-a. Marcando os cotovelos no parapeito daquela noite quente, amava-a; e a via no mar, linda em curva pela praia. 

- vou apenas dar um mergulho... sei que a água está gelada, claro que está, mas é...- desejava-a naquele momento - não vou demorar, Olavo, não seja chato!

Bonita, tão bonita, será que tinha essa percepção da própria beleza? Não era bela fisicamente, era até bem comum, mas irradiava um calor, uma brasa em cada olhar... e as mãos! que mãos quentes pra uma mulher tão inocente aos olhos.

- bonita, volte pra mim - suspirava da janela; volte, bonita.

e naquela noite a lua os acalmou como há muito tempo não fazia, com os tacos do chão todos iluminados, brilhantes de sinteco novo, refletindo as estrelas; dormiam sobre a cama, acima do céu.

28 de junho de 2012

isento

- como você quer que eu fique... - e respirou ao tentar recolher as palavras, todas afoitas, crianças chorosas em busca de um silêncio, um conforto - com todos olhando e fazendo a mesma pergunta que eu me faço neste momento: o que eu estou fazendo aqui e quem sou eu?

Olavo não sabia. Desejava apenas que nada estivesse errado em sua tentativa, na verdade nem sabia se levar Estela até lá tinha sido uma tentativa ou uma provocação; um propósito para que as coisas escorregassem um pouco mais pro ralo de saída da boa consciência. Olavo gostava do sabor da isenção, das somas que davam zero; Olavo apreciava sardas leves.

- o que você quer afinal? não é suficiente? nunca é suficiente. nunca vai ser suficiente. você deveria ir embora.

era um alvo, uma receptora perfeita de dentadas do ego alheio insatisfeito; sentia-se amarga,  frouxa, deslizava para dentro de si num tempo próprio, único e estático; Estela comportava-se como um buraco negro, tropeçando nas próprias ideias e engolindo toda e qualquer mágoa; queria ir, queria deixá-lo ali naquela cena montada onde os dois almejavam internamente serem apenas espectadores dos próprios desejos e não protagonistas errantes; com frequência Estela ultrapassava o tempo gasto para se pensar num momento como aquele: distante de todos os outros discutia com Olavo a situação que tinham se incluído, num comportamento bizarro a olhos vistos, e arranhavam-se, rangiam os dentes em desgosto, mas de cima de seus tamboretes, inabaláveis; Estela tinha sardas leves.

- vamos embora, Estela? desculpa, vamos embora? deixa eu dizer tchau aos outros e vamos?

Olavo retirava-se.
Estela cedia.

21 de junho de 2012

Estrada

eu já estava com trinta e dois, trinta e três, não lembro bem agora a minha idade; trinta e dois. sei que era trinta e dois por que você, Olavo, já havia chegado aos trinta e cinco.

estávamos, eu e você, numa disputa simples e cotidiana de argumentos, sem acidez, sem mal estar; você dirigia o carro e eu segurava o seu celular acompanhando o nosso trajeto, um pouco sem notar, já que eu conhecia o caminho, mas você não confiava em mim (apenas uma vez, por algum momento, mas não convém lembrar agora). por uma besteira qualquer do lugar o sinal desapareceu, e seu comentário de "ok, tudo bem, melhor assim que não consome tanto" do seu eternamente citado dinheiro me pareceu tão comum à situação que apenas larguei o celular entre as minhas pernas e nós dois nos desligamos do que acontecia;

eu estava perdida, sem paranoia, sem transtornos, mas imersa em devaneios múltiplos sobre o calor, acidentes de carro e a ausência há muito sentida da sua mão sobre a minha; falei sobre as vacas, uma conversa que durou 22 segundos;

houve um silêncio de todas as coisas, nenhum outro carro à vista, nenhuma construção ou referência que não fosse a estrada, você chegou a diminuir a velocidade e abrir um pouco mais o vidro deixando o cheiro de terra fresca entrar abundantemente.

como um raio o celular cortou ao meio nossa tranquilidade, um nome qualquer, um número qualquer, mas que você se recusou a atender, mas não negou a chamada e fixou os olhos no centro da estrada como nunca fazia; Olavo você me evitou de forma pétrea e eu sequer tinha feito algum comentário, nem ao menos dentro da minha cabeça e dali em diante naquele dia todas as suas frases e comportamentos tornaram-se robotizados, mecânicos, até mesmo sorrir e aproveitar parecia - aos meus olhos - em você uma atitude forçada para engolir a realidade dos seus planos, como se curtir um mero momento de lazer fosse não só uma obrigação que você empunhava-se em praticar, mas um verdadeiro trabalho contra os pensamentos que vinham à sua cabeça.

demorei muito, muito tempo, Olavo, para perceber que eu fazia parte dessa sua eterna rotina de trabalho; e de forma proposital; não que eu fosse uma completa experiência, uma cobaia cega da sua decisão de mudar as coisas na vida, não posso ser tão dura com você a este ponto, mas eu era apenas mais uma peça na sua enorme máquina estratégica de evitar tocar os sentimentos, de se ferir, de errar, e quando passei a apontar a falha estrutural dos seus planos não apenas lhe indicando isso, mas "sendo" verdadeiramente um erro de cálculo, você optou pelo descarte, pela fuga; tesão e apaixonamento, lubrificantes dessa engrenagem medonha construída por você, foram imediatamente cortados, e eu - o que havia de sobrar para mim? -, eu terminei de mãos atadas, do mesmo jeito que comecei, como pude notar depois de tanto tempo.

9 de junho de 2012

primeiro relato de Laura

não considerei colocar o vestido amarelo na mala já que não iria à festa alguma; saí com a única decisão de abandono do conforto no qual eu estava afundando e, necessariamente, trocaria por outro ainda maior caso permanecesse ali estirada por mais tempo.

claro que, como boa menina, trouxe uma caixa de bagulinhos sentimentais, coisa pouca e pequena, mas um fardo emocional que ocupou nas noites seguintes todo espaço vazio que encontrava entre as minhas dúvidas e reflexões mais simples.

eu sabia apenas que não poderia me drogar, trepar ou encarar uma piranha de frente pelos próximos meses, e pra mim isso era como viver engatada na segunda quando o mundo exige que você viva na quarta e o pé no acelerador; sóbria para sobreviver, um lema de guerra, selvagem dentro do limite urbano.

para uma qualquer, sem sal, cheia de referências óbvias e nenhuma vontade, eu estava apostando alto no erro, e não no tipo de erro clichê, eu estava pronta pra comer a própria merda.

14 de maio de 2012

Altar

não notei que este desejo meu de te ter por aqui já é maior do que você mesmo;

uma criança alada desejando mais o Sol que a própria liberdade só pode estar fadada ao desengano.

mas você cresceu forte com a chuva da minha estação e sob a luz da minha vontade, do meu trabalho...

talhei tanto o afeto.

tornei-me imperdoável, mas - querido - não foi perdão o que pedi, pois o amor não julga, não advoga; e o que tentei te ensinar, acima de tudo, é o que amor não condena.

e dos poucos que tenho, teu altar é o mais belo.

23 de abril de 2012

olho d'água

e veja esses poços circulares, de dimensão infinita, conjuntos equidistantes, numa terra onde não chove e cujo silêncio é o chiado morto de uma massa humana que respira desigual; vislumbram nas beiradas o seu próprio reflexo, uma imagem rasa cultivada pela ausência do vento, e ao redor de cada poço tantas outras almas demoram-se nesta sede;

no centro de cada poço habita uma ninfa entediada, uma escrava dos deuses, e que faz de sonhos perdidos pequenas pedras brilhantes; vez ou outra as ninfas atiram as pedras na água e esperam - famintas - as ondas chegarem às bordas e de lá voltarem causando um grande desespero aos narcisos, que se atiram em busca da própria imagem.

os que restam uivam e choram diante do espelho retorcido, e suas lágrimas alimentam cada círculo até que a água permaneça estática e suas existências voltem a ter sentido.

certa vez, uma ninfa atirou-se ao poço.

9 de abril de 2012

pistache

eu tinha segurado certa decisões, Olavo, por muito, muito tempo; cadelas raivosas na minha cabeça que latiam ao portão para afugentar o bom senso, ou a falta dele, depende muito do ponto de vista.

mas eu acabei me sobrecarregando de pequenas mudanças que no final das contas não significavam muita coisa, quase nada para ser franca; eu lembro que cheguei àquele novo apartamento e achei que  - ali, estática, observando como a luz estava opaca por causa do dia nublado - todas as minhas palavras de ternura ao meu ego estavam entaladas na garganta, na minha fonte de autoproteção, como queira.

engraçado como esses pequenos-grandes-insights da mente são como chamas e querosene; desconfortável como eu estava, jamais imaginei - ok eu poderia supor muito superficialmente - que um ato singelo vindo de você, uma palavra tão vazia de outros significados, poderia trincar esta enorme geleira que eu mantinha sobre o que eu pensava a seu respeito e, pior, sobre nós, não depois de tudo o que eu já tinha ouvido ao longo dos últimos poucos anos.

- pistache, quero pintar uma parede daqui do quarto de pistache.

eu adorava sorvete de pistache, adorava pistache, e eu até mesmo gostava do som que a palavra pistache possuía e seu significado esverdeado, mas ouvir você trazendo à baila essas minhas associações foi desastroso; me pareceu completamente falsa a sua vontade - igual a tantas outras vezes você me disse alguma coisa com uma senhora convicção tão fina quanto um papel de arroz - como se afirmar que pintar uma parede de pistache, naquele momento, fosse uma linha muito agradável em um diálogo que um autor coloca para preencher o tédio mortal que vinha desde as últimas vinte páginas.

Olavo, eu olhei pela janela e o dia permanecia pálido, olhar o céu era como olhar para o espaço que havia entre nós: uma densa camada intransponível, turva e branca; sempre imagino que céus assim nunca irão abrir outra vez e essa era a minha impressão sobre nós dois, as coisas nunca ficariam claras ou - numa dupla interpretação - estavam claras demais.

não lembro de ter comentado qualquer coisa que fosse relevante depois naquela tarde, e a primeira coisa que fiz ao sair de lá foi comprar um sorvete, por mais que um pesadelo acordado onde eu só encontraria sorvetes de pistache nas cercanias me viesse à cabeça; o que eu quero dizer é que eu estava sóbria por dentro, muito cansada e lúcida da órbita de emoções que vinha seguindo.

ainda assim, me faltava coragem; e, céus, como eu me sentia burra.


29 de março de 2012

evidências dos seus olhos castanhos

desconcentrado, estava desconcentrado por estar concentrado demais, aéreo em pequenas multidões, como um leitor em praça pública, mas não havia livro, lia um corpo e movimentos, acompanhava os olhos castanhos em perfeita simetria com o suave desenho animado que era a boca, feita a dedo, num único borrão; mas o ritmo incômodo de todo o conjunto o deixava mais suscetível à admiração do estado em repouso - ainda que incessantemente vibrante - de todos esses traços.

e imaginou-se ali, fechado pela redoma de sombras como mero observador - quase ausente - notando com certa tristeza, o óbvio desconforto pela sua distância do objeto, tamanha ao ponto que só poderia descrevê-lo superficialmente: sua casca humana ainda fresca, frágil e mole; e poucas vezes o espírito afiado que tanto desejava ver mostrava-se além da conta; enclausurado na técnica, no esmero da sedução, na vontade - pura - de ser através de algo e não apenas ser.

cada vez mais tinha essa impressão que apenas olhos castanhos estavam a salvo de deixar transparecer a verdade pois eram comuns e naturalmente dissimulados, mas frente a frente, pares de mesma cor e profundidade, podiam muitas vezes sustentar-se num embate vigoroso de poucos segundos, mas que traziam ao espírito de seus donos o gosto um pouco aguado do empate.

2 de março de 2012

contra o poente

estranhos pássaros que esperam tanto no ninho, e experimentam com suas longas asas a liberdade aos poucos, apreciando os céus com certo desdém, uma vontade de não ser o que se é, de estar por estar e, sem rodeios, ignorando aos apelos dos outros pelo voo compartilhado;

e com tamanha arrogância da sua gentileza voa sobre nós, para longe, deixando-nos - os aqui amantes dos voos curtos - sem mais nos enganar, vai-se e não olha para trás, com assombro e silêncio, contra o poente.

igual a tantos outros.

21 de fevereiro de 2012

cadáver

Despertaram todas as formigas numa noite de verão e lua cheia; operárias silenciosas, pequenas e ligeiras, buscavam o cheiro doce do cadáver na grama. E morto estava, esfriando aos poucos, perdendo o viço e a cor, numa estranha metamorfose sem brilho. Vivia como uma ilusão: de outras coisas muito menores que acabariam por terminar o que terminado estava.

Vazou-lhe a alma pela boca entreaberta, escorreu-lhe a água suja e humana de suas experiências e, aos poucos, afundou nas próprias entranhas. Quando já não havia mais luz e apenas algumas estrelas eram testemunhas do seu detrimento, a penumbra o transformou em definitivo para que o Sol não mais o reconhecesse e nem curvasse sobre ele o carinho da manhã.

Estranho os outros acreditarem que ali estava um destino selado, como se fossem livres para percorrer o caminho das escolhas; chegavam sempre ao lugar da onde aparentemente saíam.

Dentre todas as partes, as formigas descartaram as unhas, os pêlos e os olhos - estavam abertos e refletiam a luz como um par de falsos brilhantes.