26 de dezembro de 2007

Oceania

Sentada numa das rochas da praia, descansava do mundo das águas. Cantava sozinha, pensava assim, pois cada onda e passáro cantava com ela, ali na praia deserta quase ao amanhecer.

O corpo coberto de escamas-platinas, longos cabelos negros, uma respiração densa e profunda, respirava com o oceano, era o mar e tudo o que nele vivia ou reinava. Era mãe e pai daquelas criaturas, grandes ou pequenas, feias, lindas ou só estranhas. Era filha do Céu com a Terra, admirada e eternamente agraciada pelo Tempo, um fruto perfeito, e seus filhos dançavam em seus domínios livres, de cor transparente-azul-profundo.

Viu o Sol chegar e tocar-lhe o rosto, sorria e abraçava indiretamente toda a faixa de areia, vindo e deixando-a, como um encontro de desejos; deslizou para o reino das águas, e cada coisa viva lhe abriu espaço, sentiu-se amada, sabia amar, imortal não era infeliz, vivia só de paixão, e as estrelas que não tocava no céu fazia brotar no mar, e se chorava, choravam pérolas as conchas;

Foi um dia depois de piscar que viu o homem. E ao homem deu tudo que tinha, até o que não era pedido; e a ingratidão gerou fúria, a fúria matava o homem e os filhos dele. Agora esgotava-se todo dia, e via os pais sofrerem com ela, morria com eles, e vivia o homem.

Nunca mais voltou à praia; apesar do medo, não conseguia deixar de amar o homem. E sabia que se existisse o fim para ela, este chegaria antes para ele.

14 de dezembro de 2007

A História do Tio Fred

Frederico sempre foi bom moço, bem apessoado, aquele que sorri só de acordar de manhã. Frederico tinha um sobrinho, um curioso sobrinho, atento e incisivo.

Os dois costumavam passear uma vez por semana, uma pequena volta no mesmo lugar de sempre, a mesma coisa, as diferenças deveriam estar nos detalhes, mas para uma criança tudo é sempre novo, mesmo o que já está lá há tempos.

- Tio Fred? - uma puxada de mão.
- Hum. - a distração natural, não percebeu a carinha com uma gorda dúvida piscando.
- Tio Fred! - parada súbita.
- Siiiim? - de leve, porém impaciente.
- Quando chove... pra onde vão as borboletas?
- Para onde vão as borboletas quando chove? - típica confirmação adulta, quando não se encontra a resposta imediata é preciso repassar a questão.
- É.

Frederico não sabia responder aquilo. Afinal que tipo de pergunta insana era aquela no meio da tarde? Só foi entender quando viu, quer dizer, quando constatou de forma consciente, que o chão estava úmido pela chuva da noite e algumas borboletas passavam deslizando no ar com o sol quentinho deixando qualquer coisa mais viva.
Encarou o sobrinho, grande olhos azuis, o rosto corado e as mãozinhas afastando o cabelo da testa suada, haviam se passado quinze minutos desde o início da caminhada, para uma criança pode ser algo cansativo.

- Acho que quero um sorvete agora, tudo bem? - dá-se autoridade aos pequenos quando se fica sem saída, o sorvete seria apenas tempo, uma alternativa fajuta.
- Tá. Eu quero de limão! - claro, sabia que teria a resposta, mesmo ainda novo, compreendeu que o tio sem resposta só estava tentando arrumá-la.

Sentaram os dois num banco verde de praça, a criança mais velha de pernas cruzadas e a crianças mais nova balançando as pernas no ar, perguntando-se quando finalmente as duas alcançariam o chão. Anos mais tarde riria disso, ou apenas lembraria de momentos como esse, das pernas no ar. Inquieto, Frederico pois-se a pensar naquilo de uma forma mais séria, afinal a única desculpa que tinha achado era a de que provavelmente elas ficavam entre as folhas das árvores evitando ao máximo serem encharcadas. Pensou em inventar uma história curta, porém fantástica, afinal todo mundo fazia isso com as crianças, mas achou que seria injusto com o sobrinho.

- Gabriel? - veio o pensamento sádico de que todas morriam afogadas, riu até, mas não iria falar isso, não era nem verdade.Gabriel-mãos-de-sorvete apenas virou e olhou.
- As borboletas se escondem da chuva, é por isso que de manhã, ou qualquer hora depois que chove, quando você vê uma ela está pousada em algum lugar abrindo e fechando as asas. Ela faz isso para se secar. - atribuindo aquela intimidade canina aos animais não domesticáveis para facilitar a compreensão. O sobrinho apenas piscou.

- Mas onde elas se escondem? - a dúvida apareceu logo no início da explicação.
- Aí eu não sei. Vamos pra casa? Suas mãos estão sujas, toma o guardanapo. - levantou-se e esperou até que a coisinha limpasse as próprias mãos, a boca, esfrangalhando o guardanapo, mas ficando limpo de fato.
- Elas devem ir pra cima das nuvens! E lááá em cima ficam voando até acabar a chuva! - esticou os braços aos céus, empolgado com a própria resposta.
- É, talvez. - sorriu para o sobrinho.
- Mas eu sei pra onde vão os passarinhos. - com toda a pompa.
- É mesmo? Para onde? - devidamente interessado agora, colocou o pequeno em cima dos ombros só porque avistou alguém fazendo o mesmo, e adorava isso.
- Pro ninho, ora essa! - a expressão era uma novidade, usava só quando queria parecer mais esperto, ou ser mais divertido, mesmo que esses conceitos só estivesse subentendidos.

Frederico, depois de rir apenas confirmou com um 'claro, claro', e seguiram no passeio agora já em direção ao conforto do lar.

- Tio Fred, o chafariz não tá ligado hoje. - sacolejando nos ombros, apenas constatou com uma cara desapontada.
- Ah é? É mesmo, eu não percebi. - sentiu-se meio lerdo por não ter percebido o enorme chafariz sem todos os jorros de água e aquele barulho borbulhante. Mas não era só isso, sem a água sendo remexida viu carpas nadando lá dentro.
- Gabriel olha quanto peixe! - sacudindo os joelhos pendurados de cada lado da cabeça.
- É, eu já vi. - o tom mais desanimado ainda era por causa do chafariz, mas os peixes sempre estiveram lá, e ele sabia disso.

Mais uma pequena volta no mesmo lugar de sempre, a mesma coisa, as diferenças deveriam estar nos detalhes, mas para as criancinhas tudo é sempre novo, mesmo o que já está lá há tempos.

28 de novembro de 2007

O Colecionador de Tempestades

Várias vezes perguntaram-lhe o que havia; o que havia detrás da porta dos fundos, o que eram aqueles tremores leves e os estalos longos? Ele não respondia. Irritava-se, mandava todos embora, olhava para porta amaldiçoando-a.
Foi a menina que o seguiu, num daqueles dias cinzas, e como já estava bem velho não percebeu a pequena presença.
Ela escondida por arbustos e pelo som do vento, apenas viu o que nunca imaginara, o velho abriu os braços para a tempestade, como um louco, e de forma insana ordenou que se calasse e viesse sem demora. Imediatamente o céu rodou, gemeu grosso e espiralou para as mãos do homem, virando uma única forma concentrada e tempestuosa. Ele engoliu aquilo como se fosse normal e foi-se para casa.
A menina atordoada, só continuou por impulso, queria entender até o fim e só conseguiria isso arriscando. Viu-o abrindo a porta sempre fechada, e lá dentro só havia luz súbita e escuridão plena, sentiu todos os medos num só e tapou a boca para não gritar, pois quem gritou foi o velho em voz de trovão, vomitando vapor cinza e faíscas lá dentro.
Ela tentou correr, mas não conseguiu, sabia que deveria ficar ali, apesar de não querer. Ele veio e lhe disse: "sabes agora o que sou, conheces a minha glória e o meu infortúnio, és então abençoada e amaldiçoada, pois quando chegar a minha hora ela também será a sua."
E toda vez que os céus cobrem-se de cinza, a menina acalma os outros dizendo que a tempestade sempre termina.

16 de novembro de 2007

Aniversaria

Em algum lugar, alguém faz aniversário
Aniversaria como for, em qualquer lugar
Algum dia, em breve, o seu chegará

Aniversários são coloridos, são bonitos
Tanto o novo quanto o velho
Aniversaria como for, em qualquer lugar

Invejam as flores o seu dia
Cresça um pouco, sorria mais
Esqueça a sorte e o azar

Aniversaria como for, em qualquer lugar
Não esqueça de ninguém, chame a todos
Dê risinhos, suje o rosto

E se um dia estiveres longe
Longe demais para me ouvir cantar
Aniversaria como for, em qualquer lugar

12 de novembro de 2007

Mergulho

Pensou que poderia controlar tudo. Acreditou nas próprias palavras durante anos, e sempre se encontrava no mesmo remorso, numa baixa auto-estima súbita após um grande momento de descontração, ou uma explosão de felicidade. Afinal, o que era aquilo?
Dedicou-se à solidão, mergulhou em todos os aspectos profundos até onde o próprio conhecimento permitia, e cada lembrança arrancada, naquelas horas em que tudo parecia se repetir, era trabalhada, estivesse ele pronto ou não.
Queria encontrar, saber e entender até onde aquilo o dominava, até onde sua personalidade conhecida e pública deixava a corrente do descontrole ir.
Beirou a piscina, límpida, o máximo do silêncio maleável, a prova que precisava, o pensamento frequente. E exatamente como seus picos emocionais, atirou-se soltando todo o ar que podia, toda a coerência química para o cérebro, no escuro encontraria, no limite estava a resposta.
O ponto sem retorno estava próximo, sentia com clareza, arrastava-se pelo fundo enquanto o raciocínio e as cores sumiam, desbotavam velozmente, mais rápido do que previra.
Não obteve resposta para a pergunta, nenhum sinal, nada, mas foi o fracasso que o impulsionou para a superfície e após toda a dor e retorno da consciência, compreendeu.

1 de novembro de 2007

Conspiração Divina | final alternativo

Subiu a escada antecipando a vitória, finalmente o teria nas mãos, agarraria-o em casa depois de largar as roupas e os sapatos no chão do quarto, colocaria aquele jeans velho e entraria debaixo das cobertas antes de começar a leitura tão esperada. Estava certa quanto ao fato e conseguiu o livro ali no meio do cheiro de madeira velha e papel, sorriu para o dono, o velho judeu de nome difícil, e foi-se novamente pela escada.
A chuva não mais caía lá fora, fazendo-a sentir-se melhor ainda, sortuda, afortunada pelo destino. Pensou no domingo, se fizesse sol... poderia ficar lá queimando, como mais um merecimento pelo simples fato de existir.
Mortais é claro, completam seu sofrimento da melhor maneira, mas ela não, ela esquecia da regra básica.
Os deuses não tiveram que fazer muito esforço, estava tão absorta por algo tão pequeno e egoísta que o caminhão a derrubou em cheio, sobrando apenas um livro longe e um sorriso leve.

31 de outubro de 2007

Conspiração Divina

Atormentada pela chuva, seguiu pela viela com os sapatos roxos, uma busca incansável o dia todo, enfrentou cada buraco do centro com a melhor das caras, agora nem tudo estava tão bem.
O brilho se fora, o azul também, escorria o cinza por cada canto, alguém espremia as nuvens lá em cima, fazendo-as largarem aos berros toda água possível.
Mortais é claro, completam seu sofrimento da melhor maneira. Encaixaram-se em carros, amontoaram-se em todos aqueles restaurantezinhos com ar não renovado, secos e com comida sem sabor, afinal a chuva não podia matá-los, mas o que dizer de todos os tratamentos de cabelo e sapatos bem cuidados? Estes infelizmente, apesar de durarem mais que a carne, não são mais os mesmo depois do contato com a simples mistura entre dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.
Ela não, ela seguia. Com o pomposo guarda-chuva laranja-até-na-neblina, desviava dos bolsões e das poças, sem peso, deslizava e dançava, subindo e descendo os pés, direita e esquerda, lá estava a última opção.
A livraria burguesa não ficava na rua e sim dois andares acima do nível do alagamento. Só era possível saber da sua existência por uma antiga placa, e claro, para aqueles que detinham a informação há séculos a placa não tinha mais função alguma.
Subiu a escada antecipando a vitória, finalmente o teria nas mãos, agarraria-o em casa depois de largar as roupas e os sapatos longe, colocaria aquele vestido velho e entraria debaixo das cobertas antes de começar a leitura tão esperada. Estava certa quanto ao fato e conseguiu o livro ali no meio do cheiro de madeira velha e papel, sorriu para o velho dono, o judeu de nome difícil, e foi-se novamente pela escada.
Mortais é claro, completam seu sofrimento da melhor maneira, mas ela não, ela esquecia da regra básica. Os deuses só a lembraram da sua posição quando, ainda entorpecida pelo bem material adquirido, recebeu publicamente a maior poça d'água da sua vida direto do asfalto, no rosto e em todo o corpo.

27 de outubro de 2007

Limousine

- Rode por aí.

Ordens vinham da boca como sempre, aquele eterno cheiro de couro envolta, tudo preto, motorista, carro, sapato e segurança, tudo de preto.
Aquela vida, onde tinha começado? Quando foi a primeira vez que não teve que abrir a porta do carro? O primeiro flash, o tapete vermelho, milhas deles agora. À essa altura tudo era hábito, nem sabia direito onde estava ou para onde ía, muito menos a última vez em que se apaixonou por alguém. Paixão tinha, pelo trabalho, pela vida, nada muito sólido, convenhamos, esse tipo de vida não é sólida, não da forma que deveria ser.

Negava, mas sabia. E queria, almejava loucamente, há tempos. Nem se deu conta quando estava indo para outro chão coberto... pensava se a cor tinha algo a ver com sangue, toda aquela história de idade média, absolutismo e cabeças cortadas, talvez. E imaginava os daltônicos, nenhuma atração fatal por algo que só seduzia pela cor.

Em trinta segundos reviveu cada uma das decepções e quase todas as paixões, vieram rostos e lugares, veio o beijo no motorista enquanto aquele som detestável das câmeras zunia envolta, carregando, estourando e recarregando.

Deslizou o vidro.

- Para casa.

20 de outubro de 2007

A Aranha e o Escorpião

Não chove nas folhas secas.
Naquele pequeno submundo animal, entre os espaços na sombra de um tronco seco moram uma aranha e um escorpião.
Ardilosa e convencida a aranha se acha esperta demais. Preocupa-se com futilidades, oito patas pra dançar, cheia dos preconceitos, daquelas esquisitonas e senhora do próprio nariz.
Solitário e impaciente o escorpião dedica seu tempo livre a pensamentos sombrios. Extremamente vaidoso, crê em superstições, um completo perturbado.
A aranha é pop, o escorpião é sábio. Ambos concorrem às eleições daquele maldito tronco, e todos os anos, ambos perdem para um velho e pequeno roedor. Sim, um mamífero, um estúpido mamífero, solteirão, porco, e ainda por cima baladeiro de plantão, só saindo à noite.
Na verdade, o tal rato, era o delírio do povão. Seus restos de comida faziam a felicidade do formigueiro mais próximo, ele não tinha problemas com mais ninguém dali, alguns besouros gângsters talvez e, obviamente, todas as cobras da alta sociedade, mas elas não rastejavam até aquele tronco detestável para pertubá-lo.
A aranha, cansada e vendo as rugas surgirem, precisava ganhar a próxima eleição para atrair a atenção dos pretendentes.
O escorpião queria a ordem, todo o estardalhaço do rato espantava a boa comida de se aproximar, e além do mais, imagine ele, o escorpião, ganhando a eleição, era um sonho.
Fizeram um acordo, uma troca de veneno, matariam o rato e aí só restariam os dois para concorrer. O plano seria perfeito, mas os dois começaram uma discussão sobre quem tinha mais capacidade de dar cabo do roedor e ficaram nisso até o dito cujo aparecer. Completamente desnorteados com a presença quente e gorda do inimigo, o escorpião e a aranha tentaram, em vão, desconversar e fugir.
Claro, o rato devorou os dois naquela noite e palitou os dentes. E o tronco agora, virou reino.

15 de outubro de 2007

Ponto de Referência | Outubro

O décimo mês do ano nos apresenta as primeiras conclusões sobre o que aconteceu. É o início do alívio e do último desespero, principalmente dos estudantes, e as pessoas parecem mais apressadas em tudo, porém também estão mais aliviadas em saber que logo o ciclo termina.
Deveria ser uma regra geral em qualquer uma dessas constituições facilmente burláveis, "quando perceber que não falta nada, faça algo pelo tudo".
Poucos levam isso a sério, e os novatos devem começar com pequenos passos, devem sentir conforto com suas realizações e cumprir etapas sem tempo definido, o tempo certo é aquele que aparece em oportunidades, é quando você abre uma porta e se dá conta de que ela nunca esteve trancada.
É uma fina linha guiando, perceba-a sem tocá-la.

18 de setembro de 2007

Aluga-se um Coração

Nos classificados, aluga-se um coração
Amplo e recém-apaixonado, com vista para as paixões futuras
Seminovo, vermelho, escarlate-envenenado

Aluga-se um coração para jovens de talento
Amores desmedidos, canções de alento
Tantas alegrias, tanto espaço!

Só por hoje, aluga-se um coração apaixonado
Para quem quiser ver, é só vir e abrir
Chaves serão entregues só depois do contrato

Aluga-se um coração renovável no verão
Para temporadas, moças ou rapazes
Oportunidade única, sem distinção

Aluga-se um coração sem grades na janela
Com portas abertas e brisa do mar
Última chance, pronto para amar

Aluga-se um coração pela melhor oferta
Nos classificados do povo, da gente sonhadora
Para quem quer amar como se fosse pela vida toda.

16 de setembro de 2007

Regras do Jogo

Tolo é o homem que lança os dados de olhos fechados.
Uma mesa verde (sua vida), fichas empilhadas (seus desejos), cartas na mão (suas ações) e apostadores (poucos amigos).
Sua estratégia não vale nada se os outros não conhecerem os passos que você sempre segue. Seu orgulho não vale nada se você amarga uma ideia na cabeça.
"Time is money" é o que dizem, nesse caso... tempo é movimento. Aqueles afobados pelo novo, que agarram a sorte que têm com tamanha paixão e delírio intenso, perdem facilmente o sabor fino da vitória que vem acompanhado de olhares admiradores e comentários naturalmente expostos. Porém, os estáticos e conservadores deixam o fruto apodrecer no pé, como se o destino final fosse a única opção inegável, a única escolha que têm a fazer.
O longo prazo com os olhos nas cartas alheias não é tão simples, fazem de tudo para enganar, tapear, demoram de propósito, se apresentam com lindas oportunidades, como se o mundo em que vivem fosse um eterno conto de fadas. Pura ilusão.
Dê a eles algo para pensar, para roer, satisfeitos por um tempo não irão incomodar, mas saiba apresentar a jogada de maneira certa, e por partes, nunca como um todo. Pode parecer mesquinho, um ultraje aos ilustres na mesa, mas acredite, eles merecem.
O orgulho nunca será usado, deve ser mantido lacrado atrás dos olhos e em nenhum momento aparecer nos pensamentos que rodeiam a estratégia correta.
E quando o azar vier, aquele que transforma os céus azuis em tempestade, o controle deverá permanecer intacto, por que esta será a deixa para a mudança esperada, para a troca no bolo de cartas, e mesmo contra os princípios naturais... será a hora das apostas alheias subirem.
A vingança (não há palavra que defina) virá, não pelas suas, mas das mãos do jogador à sua esquerda, o mesmo que festejava a sorte como um viciado.

5 de setembro de 2007

Dias de Fuga

- Meu caro, o que há de errado hoje?
- Espero que a terra abra e me coma, mesmo com o alívio brutal que me domina, todos os dias têm sido de fuga.
- E você foge do quê?
- Corro dos pensamentos, dos problemas, quero esquecer qualquer tipo de emoção boa ou ruim.
Sem perceber perdemos o céu e andamos com um cabresto nos olhos condenando a visão. Pelas ruas, entre tanta gente, só pensamos no que vamos fazer e como vamos fazer, já passa das duas, e não chove, ninguém nota o cinza acima das cabeças, ainda estamos tentando esquecer as cobranças pessoais, o inquérito dos egos, dos personagens que querem aparecer. Mas tudo volta, e revolta, comendo cada pensamento leve que desejamos ter; opa, uma vitrine. Não, ainda há aquela outra coisa que queremos comprar e levar para dentro de um armário, engavetar como cada infeliz figurino que usamos todo o tempo.
Em dias de fuga só se pensa em lugares visitados, em pessoas que nunca mais vimos, naquele cheiro de onde já moramos. No amor que nunca tivemos.
Sapateamos em escadas, corredores, com objetivos curtos, chegar é o principal, sair torna-se um pesadelo. Ouvimos nossa própria respiração, descendo e subindo, ainda tem tanta coisa pra fazer.
Paramos. Os dois olhos observando o que há de errado (meu caro, o que há de errado hoje?), tudo passa na frente e é tanto... de tudo. Mas então percebemos que não estamos vendo o que há fora e sim remexendo o que está dentro.
Então esperamos que algo dê errado (... que a terra abra e me coma), mas nada dará errado porque tudo está certo (... o alívo brutal que me domina). Inventamos um erro, forçamos uma ideia que passa pela brecha aberta por um simples questionamento.
Meu caro, o que há de errado hoje? Não está vendo? Os dias agora são de fuga.

24 de agosto de 2007

O Corsel

Cavalos sabem o caminho de casa. Desconhecem o temor do espaço que os separa do destino final.
Cavalos destroem os ossos, pisoteiam a grama, o inseto, o chão, a terra enlameada ou endurecida pelo Sol. São a máxima representação da mente, do descontrole, da loucura, da paixão e da liberdade.

Para onde vai o corsel? Conte-lhe um segredo, carregado pelo vento ele irá para longe; e uma vez lá, desencarnará a tua mensagem com um breve suspiro.
Amarrem-lhe cordas, elas arrebentarão; privem-no do alimento, ele suportará; apele, queime, chicoteie, mais, mais, mais, coloquem-no prostrado diante de um olhar, ele não se moverá; e verás noite e dia morrer, como se Ele conspirasse contra ti.

Não é possível domar o corsel, abra a porteira, derrube a cerca, deslace as fitas vermelhas, encontre-o, observe teu porte, tua cor, então entenderá.

E as estrelas o premiarão com a mais bela compreensão, e aquela que tu sempre refutas (a mente), nunca mais irás condenar.

21 de agosto de 2007

No chão da cozinha

Derramadas ali estavam as sobras do vício, nos azulejos velhos da cozinha reformada.
Subindo com um olhar deslizante, começando pelos sapatos pretos e terminando no hematoma que surgia na coxa esquerda, queixava-se dos próprios sonhos borrando toda a maquiagem, mordendo os lábios entre soluços já enfraquecidos pela bebida. Sabia desde o início do maldito dia que estaria ali quando todos fossem embora, rindo sarcasticamente de volta para suas vidinhas.
Metendo as mãos entre os cabelos, um emaranhado sem nós, buscava um conforto antigo dos tempos em que, só, encontrava-se bem e satisfeita. Ali no chão da cozinha era outra, descontrolada, com o corpo e o copo largados, sentia um profundo desapego e, mesmo de modo estranho, ria da própria desgraça com lágrimas escorrendo até o frouxo sutiã.
Em vinte minutos levantaria dali, iria para cama, sozinha, e quando acordasse indisposta no dia seguinte, descobriria e ligaria para o número deixado no bolso de seu casaco verde.

15 de agosto de 2007

Amigos (e Amantes)

Acordam as emoções, e atrás delas vem o resto: os sentimentos, os apelos físicos, as pequenas confusões mentais, a música de ontem.
Entramos no mundo dos outros e os outros no nosso, no metrô, na esquina, entre os telefonemas matinais, as perguntas incoerentes, as risadinhas abafadas, a dedicação.
Mal são sete horas, dessa manhã inesperada, que só existe uma vez, e estamos dedilhando os afazeres, desejamos café, uma mesinha, uma conversa descontroladamente cultural, mas perdemos tempo (e como adoramos isso) com as próprias risadinhas abafadas, aquelas de dois minutos atrás, as de sempre.
Rabiscos, olhos abertos por todo o papel, rostos estranhos, uma busca pela inspiração, ou pelo menos por uma ordem na criatividade... impossível, queremos algo além, aquilo que chamam de liberdade talvez, mas preferimos algo muito mais doce (e econômico): sorvete. Principalmente o compartilhado, o que nos faz rir absurdos na hora do almoço, a nossa conveniência preferida.
Foram-se as horas e passamos por todos os picos de despreocupação e preocupação, igualzinho à bolsa de valores, uma tensão necessária, que engolimos todos os dias, e não é nada sério.
Nós somos os próprios amantes, sibilando nas noites o futuro, descontando os problemas, envolvidos em mexericos atrás das paredes, rindo, sorrindo... dormindo.
E somos os melhores nisso.

9 de julho de 2007

Crenças Opostas

Mesmo o que nos mete medo pode ser corrompido. Faz-se saber que aqueles que não acreditam na voz do povo têm dificuldades para conhecer a si próprios.
Não falo de deuses e demônios, mas sim do que há por dentro, aquilo que pensa duas vezes no mesmo momento, entre frases internas. Acreditar nesse descontrole não deve nos levar ao egoísmo, a vingativos desejos sem razão, devemos brindar essa pequena descoberta numa mesinha própria com risadas íntimas e totalmente particulares.
Sortidas crenças, jogadas de um lado pro outro, inegáveis, infalíveis, regidas por um poder centralizado, bobagens teorizadas, o que vem de dentro é pior, tão mais divertido, e desacreditar não é um crime, é um simples querer sem consequências.
É permitido inventar sua própria forma e transformar sua percepção num lindo caleidoscópio, sem deixar de lado suas origens, suas entidades figurativas, imagens de um tempo em que não se permitia saber de si, exceto os detalhes externos.
Crer é relativo, é ocasional, acontece, aparece e não há nada do outro lado da ponte em que você se encontra sentado. Isso apenas porque você não se deu conta de que está aguardando algo do outro lado, quando deveria acreditar no que te faz ficar de pé ou em onde você está de pé.
Para tanto é preciso deixar-se em paz, é preciso mistificar os anseios de dias que já se foram, desconceitualizá-los.

26 de junho de 2007

Táxi

Então ela disse: "Alguns acreditam que o fim é o início de algo, sempre. Afinal algo sempre começa quando outra coisa termina. Mesmo que não siga a mesma linha. Porém, outros dizem que o fim é apenas o fim. Que após ele não há um início, há apenas outra fase, outro tempo, afinal você nunca mais viverá o último segundo que se passou."
Não era um café qualquer, uma aula de filosofia corria rapidamente por ali enquanto duas peruas discutiam a venda de um apartamento. O tédio não podia se encaixar em melhor momento, mas talvez ele não estivesse afim de aparecer.
"E no que você acredita?"
"Eu acredito neste cheese cake, ele é a minha doce realidade, o resto podia pegar fogo."
Ria de uma forma meio ridícula quando fazia afirmações como essa. Não que não fosse interessante, só que aquilo fazia parte de um espetáculo mental particular, como um desses reality-shows que empobrecem o ser humano, o único objetivo nesse individualismo era a auto-afirmação. Selvagem demais pro gosto da minoria. Mas...
"Vai comprar o relógio que tanto quer agora?"
Passava os dedos avidamente envolta da garrafa de água, uma forma de chamar atenção talvez, uma dúvida, ou fúria, contida por alguma lembrança, empurrada por um alfinete da situação.
"Não, na verdade quero ir para casa, agora."
Parou. A comida tinha acabado, a água era apenas água, cigarros nem pensar. Então...
"Você nunca se contenta com a minha companhia. Não te vejo tem três, três semanas."
"Quando falei casa, estava me referindo à sua casa."
Engoliu, mas não estava satisfeita. Não acreditava totalmente naquilo, silêncio. Talheres batiam ainda na louça por todos os lados. No vidro, onde não haviam reflexos, um trinco aumentava à cada dia.
"Voltou a pensar no plural? Tem quanto tempo agora? Cinco anos?"
"Seis. Mas isso não importa. Podemos ir agora?"
A conta já estava paga desde o início. Era incômodo ter que esperar uma confirmação para se levantar.
"Está chovendo. Trouxe o seu guarda-chuva?"
"Sim."
Foi no táxi. No táxi que perdeu as chaves de casa, as chaves dela.

18 de junho de 2007

Dream, Dream, Dream

Girar não é tão difícil, escandalosas lâmpadas envolta feitas para hipnotizar, base infantil na decoração, postes listrados, então montados em fibra de vidro, verdade "coloroca" surpreende no fim, música de algum, de todos, de baixo, pelos lados.
Girar em emoções desagradáveis não é tão difícil, tempos marcados, compassos, notas de uma antiga juventude, amarradas em maternos consolos do vento fraquinho.

Girar não é tão difícil... mas enjoa.

"All I have to do is dream... dream, dream, dream..."



Trecho da música "All I Have To Do Is Dream" - Everly Brothers

13 de junho de 2007

Sorriso Monalisa


Você é você até que perceba que não é. Facetas estranhas todos têm, sutilezas mentais, querer estranho, o que desejava Gioconda? O que escondia, segurava dentro e por que se deliciava com pensamentos impróprios ou não.
São esses sentimentos sazonais, essa coisa que muda o povo, uma troca de atos, uma peça total, pedestais para cada um, armários, corpetes, sapatos novos, há muito o que se refazer ou improvisar, cuidado para não cair, poucos sobem tão rapidamente, sangram os punhos para buscar atenção máxima. O pedestal, o suporte, a necessidade da iluminação, a troca de papéis, você é você até que perceba que não é.
Quantas rachaduras existem no seu espelho? Quantos vincos separam sua visão, as partes do ego, quantos relógios te dizem a hora?
Prefira deslizar entre as mentes alheias, ocupadas ou não, te querem de qualquer forma, até trocam palavras em voz alta, mas o que há dentro é mais real, ninguém solta seus adjetivos-pecados. Marque cérebros com os dedos, com as mãos, encrave-se até que os outros queiram pedaços, delícia, esqueça sempre quem é você, diga o que você é, o que você sente e pensarão profundamente no seu jogo pessoal.
Tragam o pedestal, Monalisa está sorrindo.

3 de junho de 2007

Pessoas

Somos então carbonocópias com água, somos iguais perante o científico e o divino, somos iguais diante de escolhas individuais e todo o resto. Mas somos tão diferentes em tantas singularidades, como não sentir atração por nós mesmos?
Pessoas são muitas em muitos lugares no mesmo lugar. São um acúmulo de sensações, quimicamente complexas, fisicamente possíveis, literalmente reais.
Temos inúmeras regras sociais, chamamos de 'sociedade' aquilo que possui um número considerável de indivíduos com valores similares, ou não. Complicamos o sistema linguístico, desenvolvemos teorias sobre nós mesmos, julgamos e concordamos, somos apenas pessoas.
Conceituamos família, lar, o certo, o errado, o novo, o velho, todas as ambiguidades, os opostos. Generalizamos, cobramos coisas inexistentes, aceitamos ideias, compramos uma planta ao invés de plantar uma.
Usamos palavras importantes, ser, sentir, criar. Nos dá tanto poder, tantas possibilidades, frases infinitas, livros imensos, extraímos o imaginário para ter uma espécie de segurança, seria isso?
Como não sentir atração por nós mesmos? Uns aos outros, somar todas as cores, todas as peças, com outras pessoas, descaracterizar expectativas, facilitar uma compreensão, restos são impossíveis, não há matemática que nos sirva como gostaríamos.
O que nós mais amamos, agora e sempre, somos nós e os outros.

26 de maio de 2007

Metropolitan


Reclamam demais do crime, da violência, do que há de ruim pela cidade. O chão está sujo, o esgoto fede, as marquises caem, as pessoas se socam, se chutam, se atropelam aleatoriamente.
Assaltos frequentes, batedores de carteira, menores infratores, cola, cocaína, maconha, repórteres da Globo, é tudo um saco mesmo.
Shows são muito caros ou são muito longe, parques são maçantes, museus estão em greve, cinemas são lotados e caros, shoppings servem para almoço. Há berros, gente feia na lotação, celulares com os mesmos toques, estresse em massa, mas e daí? Ninguém disse que era bom.


Claro, tem praia. Maré vermelha, ressaca, gente demais, areia demais, e no inverno nem é possível pensar nisso. Chove, tudo vira lama, sapatos escorregam, rios enchem, o esgoto fede (sempre), tudo vira um porre, trabalhos não foram entregues, faltou luz não sei aonde, não dá tempo de comprar aquilo, vendedores são burros, garçons nem se fala, taxistas compensam é verdade.


Pela noite tudo é mal iluminado, os bares estão lotados, restaurantes não satisfazem, de repente falta gente, pra onde foi todo mundo? Comemorações, casamentos, aniversários, protocolos, parentes indesejáveis, amigos que não vieram, fotos, fotos, fotos.
Tem jornal na porta, tem hora pra chegar, tem almoço na geladeira, só chega em casa às dez. Há vida por todo canto, a cidade cansa em exaltação, uma parada para o café.


Só há silêncio na frente de computadores, provas, livros, novelas das oito e o que mais desligar o senso comum, as sinapses ronronando e nada mais.
Que reclamem, que vomitem, que digam "tudo está pior", pois nada pode ser comparado à vida metropolitana, às possibilidades, ao Caos necessário, é isso e está ótimo.
Risadas solitárias fazem parte do cotidiano, hipocrisia é o que sobra.

27 de abril de 2007

Tardes

As tardes de vento no rosto, os rostos quietos observam a grama estática, imóvel, sob o Sol da tarde. Simples tarde, onde amigos e amantes se encontram em total êxtase, desligados dos momentos corretos, das suposições e dos problemas. Tardes mornas que nos fazem desejar o impróprio, o promíscuo, ou apenas o riso. Tardes mornas que descem dançando com a luz enviesada, girando junto com o povo, o povo que desce aos montes, hipnotizado, de olhos abertos para a mente.
Tardes de banho de Sol, de calor, de satisfação pessoal, de delírios criativos, entupidas de sono infantil, recheadas de brotos que estalam, escassas frutas no pé, chuvas esparsas, chuvas fortes, raios ou nuvens.
Tardes de espaço, vem com preguiça, com lençol, com sorvete de creme e pensamentos lá longe. Telefonemas, mensagens, nada... o mundo não presta atenção, o mundo apenas observa, tardes de espera, de fim de expediente, de sapatos na escada, dos jeans no quarto. Sem pudor, sem educação, sem conversas sérias, nas tardes tudo é de pouco valor, o abstrato completa, nas folhas que rodopiam, no semáforo vermelho, no suor das ladeiras.
Os lápis de cor, os gatos cor de caramelo, as janelas abertas, borboletas nas flores, os parques repletos de viço e repletos de suspiros, de gente, de bicho, de coisa qualquer.
Tardes transpiram, derretem, amaciam, voam, mentem, tomam café ou chá gelado, aguardam, se arrastam ou correm, apenas passam, mas absorvem a gente. Olhares, abraços, cumprimentos, beijos, bolos de aveia, piscinas preenchidas de luz, quentes em cima, mornas no meio, surpreendentemente frias no fim. Sofás coloridos, mesas de vidro, pilhas de CD e livros lidos, jornais velhos, revistas de ontem, sacolas plásticas, e também chaveiros, chinelos, silêncio. Segredos individuais, fofocas, revelações, fotografias, histórias dos outros, de muitos ou poucos, aleatoriedades, previsões meteorológicas, loucuras, sussurros e gritos. Buzinas e bocejos, trabalhos de grupo, diários, canetas, e é claro, monitores e teclados.

Com música elas logo se vão, cansadas, desgastadas, de laranja ou de cinza-azulado, aos poucos, deixam desejos, deixam marcas, cores, carinhos, sonhos e sorrisos no canto da boca. Elas vão saindo, logo viram na esquina, e nada mais resta das tardes, exceto a imortalidade.
Imagem: "Afternoon Walk" de Irene Brownjohn

25 de abril de 2007

Medo


É sim um assunto complexo. Não desejamos, não entendemos, apenas cultivamos de maneira irracional. O medo. Os medos.
Eles podem ser grandes, pequenos, claros, escuros, internos, externos, secretos, públicos, concebíveis, inconcebíveis às vezes, talvez, mas eles são estranhos, muito estranhos.
Nunca vi ninguém não reconhecer o medo. As pessoas podem se perder ao dizer que estão com raiva, que estão apaixonadas, nervosas, ansiosas, felizes, nós damos vários sub-significados à essas palavras. O medo é imediatamente reconhecido, nós não negamos o medo, nós fazemos questão de compartilhá-lo em busca de conforto, em busca de apoio e até mesmo de uma forma egoísta esperamos que a pessoa ou fique com medo como nós, ou não sinta medo nenhum e faça com que encaremos o bicho-papão.
O possível é feito para se compreender, nós damos nomes as coisas para tentarmos entendê-las de maneira rápida, direta. Fobias, angústias, pressentimento, são tantas maneiras de se dizer.
Temos medo das coisas, das pessoas, das situações, dos sentimentos, do que vemos, do que não vemos, do que nos persegue, do que nos deixa para trás, da morte. Temos medo de sentir medo, de estar com medo, de ficar com medo, de depender de um medo.
O medo nos atrasa, nos arrasta para os instintos antiquados, nos arrepia, nos faz tremer. Só gostamos quando sabemos o limite da dose, quando não há futuro para o medo presente, mas há sempre a dúvida, os questionamentos, sobre o medo.
Ele nos faz lembrar de outros medos, nos conduz de maneira errada, pensamos no pior, se torna terrivelmente irresistível, nos entregamos facilmente, choramos, desejamos o fim, arranhamos, gritamos, e nada nos responde. Nada está ao nosso lado. Ele nos consome, toma forma, toma o controle, nos acerta no peito e devasta todas as opções, todas as escolhas, todas as razões.
O medo.
Imagem: "Conscience" de Maria Burd

16 de abril de 2007

Evidências (no Carrossel)


A vida é feita de fatos, histórias, certas, erradas, mentirosas e verdadeiras. A vida se resume a um carrossel. A vida é nada mais que uma condição imposta, um favor talvez, um merecimento.
Evidências são coisas que comprovam a vida, a morte, qualquer coisa. Evidências são pontos de luz nos fatos, são ratos em bibliotecas, são vaga-lumes na escuridão. Evidências surgem, escorrem e transbordam das dimensões que enxergamos, elas comprovam a nossa existência. Elas comprovam que o buraco na parede é, antes de mais nada, um buraco na parede e posteriormente uma evidência de alguma coisa.
Nos mostram a realidade que devemos presenciar, mas não nos mostram a verdade. A verdade das coisas é dada por nós. Evidências são perguntas cretinas, chaves de um enigma e são representadas em nós pelo arquear de uma sobrancelha (ou duas), pela emoção discreta, pelo aumento da pupila.
No carrossel elas dizem que só podemos ir para frente, nós fazem acreditar nisso, mas muitas vezes vamos para trás e com muita gente do nosso lado. Nos distraímos com luzes, música, altos e baixos, o carrossel é sim uma droga infantil, um vício adorável. Desejamos cada vez mais o circular interminável, o riso descontrolado, o medo de cair nos parece simplesmente perfeito.

30 de março de 2007

O Sentido da Guerra


Quando paramos para observar as várias reportagens, artigos e imagens da cobertura jornalística de uma guerra nos perguntamos qual é o sentido de tudo aquilo. A mídia, e até mesmo os países envolvidos, não deixam claros os objetivos dos ataques, das bombas, nem explicam o desespero e as mortes.

Como brasileiros, somos um povo que habita uma região pacífica em relação a conflitos internacionais, e por isso visualizamos a guerra dentro de uma idéia de ilusão, como se estivesse muito distante e não fosse um motivo de preocupação. Isso é reforçado por uma lógica natural do ser humano: a de se interessar ou se preocupar apenas com aquilo que perturba diretamente sua vida de um modo presente. De fato, uma guerra que explode no Iraque não irá influenciar diretamente a rotina cotidiana de um simples trabalhador. Não de forma que o impeça de fazer alguma coisa ou coloque em risco a sua sobrevivência. Indiretamente, uma guerra no Oriente Médio o afetaria causando aumento do preço do barril de petróleo, o que geraria um aumento de todos os seus derivados. Porém, poucas pessoas associam a alta de cinco centavos do preço da gasolina na bomba a conflitos no Oriente Médio.
Nós questionamos o sentido da guerra apenas por hábito na maioria das vezes, apesar de experimentarmos um sentimento de impotência, este sentimento se perde em meio a pensamentos próprios e razões inválidas diante, do que sente alguém que perdeu parentes e o lar por causa de ideais que nem ao menos conhecia ou valorizava.
Existem, é claro, pessoas que dedicam tempo e a própria condição de vida, exclusivamente para trabalhar contra a existência de guerras e demais conflitos, e o fazem mostrando que toda aquela real encenação bélica não vale à pena. E é um desperdício até mesmo de um dos principais produtos da guerra: o capital. Mas, não estariam essas pessoas apenas tentando acalmar o próprio sentimento de impotência frente a algo tão forte?

O sentido da guerra é uma consequência de interesses e motivos, sejam eles religiosos, étnicos, ideológicos, econômicos ou territoriais. Podem ser também de longa data, recentes ou súbitos. Um motivo medíocre e súbito gerou a guerra mais rápida da história, que durou apenas 37 minutos, e aconteceu da seguinte maneira: Uma esquadra inglesa decidiu ancorar no porto de Zanzibar (capital de um conjunto de duas ilhas pertencentes à Tanzânia), na África, em 1896, para assistir a uma partida de críquete. O sultão de Zanzibar não gostou e mandou que seu único navio atacasse os ingleses. Quando o navio abriu fogo, os ingleses o afundaram rapidamente e ainda destruíram o palácio do sultão, matando quinhentos soldados. Zanzibar se rendeu na hora e o sultão fugiu para a Alemanha.

A História nos mostra que muitas vezes, em tempos antigos, as guerras foram geradas por motivos primitivos ou causa infundadas, como a posse de terras e o desejo de controle e poder. Esses motivos hoje estão, em sua maioria, mascarados por interesses econômicos e/ou religiosos criados à partir do ideal capitalista e da crendice obsessiva. Quando de fato são ainda primitivos perante o avanço social e científico que se vê presente de uma forma geral em todas as nações. Entretanto, a maior parte desses avanços, e os de maior influência, estão concentrados nas nações desenvolvidas e são distribuídos de forma extremamente burocrática para o resto do mundo. O que gera desconforto, acordos, tratados, assembléias de órgãos internacionais e nenhuma solução efetiva. Só o que resta são os motivos primitivos, a provocação, a corrupção, as sanções, as acusações, a desigualdade social... a guerra.

Se olharmos toda a nossa trajetória, e procurarmos entender o que nos move em direção ao conflito, veremos que o sentido da guerra é, na verdade, a soma dos valores individuais e egoístas que todos nós damos à ela.

12 de março de 2007

A Árvore das Possibilidades


Aquela velha história de que só reconhemos o valor das coisas quando as perdemos é meio furada. Na verdade agregamos muito mais valor às coisas quando as vemos pela primeira vez, sejam valores positivos ou negativos. Como quando ganhamos um presente esperado, no momento que possuímos o objeto de desejo nós atribuímos o valor máximo a ele. Quando compramos roupas novas, quando comemos um prato tão bem preparado ou quando conquistamos alguém. Em todas essas situações há valorização máxima de uma forma positiva, mas também damos valores negativos às coisas. Valorizar negativamente é totalmente diferente de desvalorizar algo, uma valorização negativa é atribuir defeitos, ou ter repulsa, imediatos ao ganso de cristal que sua tia Helga lhe deu de natal. Desvalorizar é apontar defeitos após uma valorização positiva, é cansar, é ver o iPod cair tantas vezes no chão que fica com desgosto do objeto.

Mas e quando envolvemos algo abstrato às valorizações? Como uma situação, por exemplo. Está certo que uma situação é a soma dos valores de tudo que se encontra nela, como o local e as pessoas, enfim o ambiente. Se quisermos complicar as coisas podemos tentar entender a valorização de sentimentos, mas eu diria que isso seria impossível, já que para mim um sentimento é o resultado final de uma valorização simples ou complexa. Como uma bola de neve... você procura um apartamento para comprar, tem as primeiras impressões pelo anúncio, depois pelo telefone com o vendedor, finalmente ao atravessar a porta da possível nova moradia você está enlouquecido em adequar cada parede às expectativas que tinha antes de vê-las.

O que aprendi, até agora, com tudo isso é que talvez seja mais fácil enxergar as coisas como possibilidades, até mesmo as pessoas. Pode parecer muito racional à princípio, mas o segredo é deixar de ser hipócrita, e forçar uma perna para fora das regras sociais estabelecidas sabe-se lá Deus quando. O discurso é matemático, não tem outra maneira de explicar uma coisa dessas, ainda mais com a palavra "valor" envolvida. Se parar para perceber como fazemos cálculos o tempo do todo, será possível prever o resultado e as possibilidades de se chegar até ele.
Como diria a minha "adorável" professora de matemática, "no primeiro momento precisamos fixar a idéia e depois vemos a árvore das possibilidades", em teoria ela estava certa, mas na prática era uma piada. Nesse caso, como estamos falando de coisas e não números, temos muito mais chances de sucesso e aprendemos de uma forma ou de outra.

Não estou falando de estratégias ou dando dicas sobre como burlar a própria mente (hahaha nem tente fazer isso), só acho divertido querer entender e usar os coloridos botões disponíveis na minha cabeça e na cabeça dos outros. Enxergue as possibilidades, ganhe prática e coisas simples irão se tornar, cada vez com menos frequência, em um bloqueio que ri da sua cara ao ver você cavar a terra embaixo da cerca com uma colher. E o pior: de plástico.
Imagem: Dennis Warren, "Couple Reading Under Tree"

3 de março de 2007

Sorria, Corina


Ela não tinha mais o Reino do Ensino Fundamental, já não fazia trabalhos com lindos babados coloridos feitos com papel crepom, ou levantava sua mão rapidamente para questões de Geografia, História, Português, Ciências ou o que mais aparecesse para responder. Mas apesar de tudo, continuava a mesma burramente empolgada de sempre.
Agora, no segundo grau, tinha mais peito, consequentemente nenhuma bunda. Os hormônios lhe deram sardas e seu cabelo lindo se transformou em um (horrível) emaranhado de cachos indefinidos, que ela fazia questão de escovar ou prender quando pudesse. Infelizmente a mesma "sorte" não tiveram os neurônios, a simplicidade das coisas baseava-se no seu sorriso, uma rápida sugestão de cordialidade e ela abria os lábios em um sorriso perfeito, pelos menos os dentes eram brancos.

Corina, era assim que se chamava, dedicava seu tempo pensando em hipóteses. Assim, suas ações eram poucas e o ritmo mental estava deixando a desejar desde os já remotos tempos da oitava série. Claro que ela tinha amigos do mesmo rebanho, aquele típico rebanho que se apresenta intelectualmente e cai em prantos no final do dia, ao ver a derrota se tornar mais óbvia dia após dia. Não se podia negar que sua dedicação era muito religiosa, "façamos isso e isso desta forma, tudo ficará lindo!" e abria um sorriso.

O problema dela eram os outros, e ela sabia disso. Os outros, entre conversas de temas musicais, culturais, políticos, e projetos pessoais, usavam como tema de conversa inútil a auto-ridicularização que certas pessoas (como Corina, linda!) sofriam diariamente em sua vida. Sim, não eram comentários saídos do nada, Corina vestia a carapuça de chata e engraçadamente-irritante quase todos os dias, sem nem ao menos perceber, ou então percebia, mas não conseguia se livrar daquele vício.

Hábitos comportamentais são difíceis de mudar, na maioria das vezes a pessoa precisa passar anos tentando mudar o jeito de ser em alguma determinada coisa, porque para mudar em tudo precisa ser louco, tipo doidão mesmo. Mas deixemos os meus comentários de lado, voltemos à Corina, linda!

Discutia-se muito sobre ela, era um dos alvos prediletos, não tinha como não ser. Seu futuro provavelmente será rodeado de eternas tentativas de tornar destaque entre a multidão, mas ela já teve sua oportunidade, acredito que ainda tem salvação, realmente acredito nisso (PFF! OK, admito, ela está ferrada.)
Se ao menos ela parasse de se mostrar como uma personagem, e mais como uma pessoa com próprios gostos e opiniões sinceras sobre as coisas, ela desenvolva melhor o lado social. E quem sabe se parar de se fazer de vítima para ela mesma (se estiver lendo Corina, sabe do que eu estou falando, e é sério.) encontre caminhos menos pedregosos para o destaque tão almejado.

As pessoas comentam muito sobre as outras, sei que ela não é muito diferente de mim no quesito "vidas alheias", muito natural na nossa tenra (e LINDA!) idade. Mas se Corina viesse falar comigo, eu a ajudaria. Acredito que exista a "troca de favores involuntários" entre as pessoas. Ela não saberia que eu estava a ajudando, e ela certamente me daria algo significativo em troca que eu só descobriria mais tarde.

Mas por hora, eu só vou ficar no raso, falando ali das derrapadas básicas de Corina, e um dia ela vai cair de cara no chão ou vai comprar um sapato novo. Torço pelo sapato novo. Porque o teu tá muito feio hein, Corina!

24 de fevereiro de 2007

Memórias Suas (Girassóis)


O que mais me irrita agora é o calor. Minto, são as janelas. Minhas janelas são abertas para a inconfundível urbanidade, para o cimento, árvores jovens e sonhos faraônicos da arquitetura.
Sinto a falta dos girassóis, quando eles eram três... plantados em um vaso cinza. Mas eles não passavam de invejosos do ideal de um campo repleto, do horizonte verde e amarelo, do meio-dia refletido pelas pétalas douradas, apontadas para o céu em submissão à luz eterna.

Meu encontro com a maturidade é certo, não posso evitar. Nem sei que idade tenho, não avalio à mim mesmo, apenas aos outros. Me lembro dos planos, das viagens por ocorrer (que não irão acontecer), da troca de risos. Agora está tudo bem, os outros me iludem facilmente, mas eu cansei...
Os valores me são estranhos, eu não os reconheço mais, não posso acreditar neles. Estou aberto nos dias comuns, delirante, mas não consigo esquecer os girassóis. Já me esqueci de esquecê-los, deve ser por isso que retornam nas horas impróprias. Ali na simples leitura de Virginia, nos números rabiscados em cadernos ou na minha prisão domiciliar.

Admito que não sei o significado de tudo isso, mas pouco importa agora. Eram chances demais, oportunidades que meu destino corrompe como todas as outras vezes. Sei as origens do problema, as complicações cósmicas e também das mentes céticas. Realidades têm dentes fortes e praticam o canibalismo, não se pode colocá-las juntas tão abruptamente, o tempo deve mediar o encontro.

As janelas são minha visão antecipada e também a abertura da minha mente conturbada. Toda vez que o ar aquecido entra girando pela sala, eu me lembro dos campos de girassol. E memórias suas são vistas através da janela.

20 de fevereiro de 2007

Uhu


Dias de festa nos deixam animados, excitados e revirados. Claro, afinal é pra isso que servem, para agitar um pouco a nossa urbanizada e enlouquecida vida, cheia de problemas impensados, dores de cabeça e pensamentos aprisionados.

Nós queremos de alguma forma refletir com novos ares, usamos a música para isso talvez, nem que seja algumas vezes. Psiquiatras diriam que "as pílulas são para lhe dar espaço", mas acredito que a música também pode fazer isso. Afinal estamos por aqui há alguns milhares de anos e tenho certeza de que pensamentos sem noção já ocupavam a cabeça de nossos ancestrais, em uma época onde não havia pílulas para "dar espaço". Talvez seja por isso que batiam tambores por qualquer coisa, ou realizavam rituais em busca de um conforto mental, mas hoje? Hoje, você vai na farmácia comprar o remédio que outro psicótico que nem você lhe receitou. Tá certo que o psicótico é formado em Medicina, teve que aguentar defuntos, formol, sangue e casos bizarros de bolhas aparecendo onde não deviam estar, mas isso não o faz menos lunático que você, ou faz?


Enfim, Beethoven era surdo e para fazer a maluquice dele usava um pedaço de madeira preso ao piano para morder ou pressionar contra a testa. E ninguém virou para ele e disse: "Ei BETH! VOCÊ PRECISA DE PÍLULAS!". Bem, eu não sei se já tinha pílulas naquela época, mas com certeza o médico teria receitado alguma muamba contra a "maluquice" de Beethoven.

Não podemos esquecer do fato que tem muita gente doida que gosta de ficar ainda mais doidona, nos lugares onde as pessoas vão para aliviar a panela de pressão que chamamos de cabeça. Essas criaturas, que perderam a noção já no berço, deveriam ficar com as pílulas e deixar os loucos-normais (que somos nós, ok?) se acabarem na pista. Sabe? Descer até o chão, fazer a dança do pavão, essas coisas... pode falar que concorda, eu não vou ouvir.


Ainda tenho a convicção de que quando ficamos muito tempo sem ouvir uma boa música, ali no rádio mesmo, perdemos o fio da emoção e ficamos irritadinhos com coisinhas. E a "panela" não nos deixa em paz (pstch, pstch, pstch... girando igual e soltando fumaça). Por isso eu, que não sou formado em Medicina, mas que já vi um bom número de corpos sem vida (humanos e animais, não me rotulem como Zé do Caixão, pelamor), acredito na perdição uma vez por semana. Esqueça o resto, esqueça mesmo, mas pelamordedeus lembre-se na segunda-feira quando acordar, ou eu vou ter que concordar que você precisa de análise e de pílulas.


Agora vai, que eu te encontro lá.

17 de fevereiro de 2007

Prozac



O problema é querer um problema. É abrir duzentos braços para o que vier pela frente. É permanecer inconscientemente calado, esperando apenas que a razão lhe complete as palavras na boca.
Acordar todos os dias com a mesma sensação de que você está se tornando outra pessoa é viciante. Você sabe que continua o mesmo, apenas finge involuntariamente que não é. E como isso cansa, e muito, você tem pequenos surtos e grande necessidade de mudança, mas nada acontece. Então você engole a sua derrota como um Prozac, e se satisfaz com delírios próprios e encenações para a consciência.

Não suportar o meio-termo é o que te consome. Estar sempre beirando a felicidade plena e a depressão suprema não é algo divertido. É como uma luta eterna entre deuses gêmeos criadores do todo. Titãs de igual poder que brincam com você como uma bolinha, para lá e para cá. E você não sabe qual deles vai se cansar e desistir sabendo que perdeu por escolha própria.
Nenhuma tentativa de escapatória você consegue planejar, por que sabe que irá falhar.

E a principal dúvida que te acorda pela manhã e não te deixa dormir à noite é sobre o que seria melhor: o abandono da felicidade ou da depressão?


*Retirado do Diário Pessoal

6 de fevereiro de 2007

(Sempre) As Horas


Um dia, quando chegar a hora, nosso tempo irá acabar. Nossas vidas irão murchar de pouco em pouco. Bem como cada árvore, cada flor, cada jardim que lembrarmos. E os rios e mares que conhecemos irão secar.

Nosso estilo de vida, nossos livros, nossas músicas. As idéias, os grandes pensadores, a moral, a ética, o velho e o novo. Nada permanecerá.

E de certa forma nos preparamos para isso de maneira natural. Percorremos situações, conhecemos pessoas e lugares, adquirimos o conhecimento herdado de outras gerações. E também fazemos coisas simples, vamos à praia, compramos pão, olhamos pela janela ou lemos um livro. Estamos sempre à mercê das horas. Usamos relógios, vemos relógios, ouvimos relógios. O tempo nos acompanha como um escravo. Até o último acorde, quando o Sol se pôe e nos preparamos para as novas horas.

Mas nada nos basta, nada nos sacia, vivemos para nós mesmos, buscamos a felicidade e queremos esquecer nosso lado infeliz. Mesmo sabendo que estes conceitos são falhos e antiquados, que o que nos cerca são as horas.


Temos medo, vivemos com um instinto que nos cega e nos consome. Fazemos o inusitado, recebemos prêmios próprios e aplausos da consciência. Aí nos perdemos, enlouquecemos, suamos em busca do sempre, do ideal imortal, do fixo e do constante, como um vício nojento. E esquecemos completamente de tudo e de todos, inclusive de nós.

Mesmo os iluminados, os eternos benéficos, os visionários e poetas podem perder o prumo, o ritmo, o fio. Isso porque não percebemos que quando tudo acabar, quando não houver mais o anseio e o desespero.

O que nos prende e faz definharmos como uma árvore no deserto são as horas. Sempre... as horas.

30 de janeiro de 2007

O Reino de Bosta Nenhuma


Era uma vez, em alguma época distante e remota, um pequeno reino... o Reino de Bosta Nenhuma. Ele era como qualquer outro reino, tinha um rei, terras verdejantes, camponeses frustrados e cavalos brancos. Porém o Reino de Bosta Nenhuma também tinha bruxos e bruxas que brigavam incansavelmente pelo poder.


Os camponeses já não aguentavam mais a baboseira de duelos entre os feiticeiros locais, uma demonstração idiota e que sempre termina no fracasso e vingança do perdedor. Inconformados com a barulheira que era feita com os feitiços lançados, representantes de todo os cantos do reino foram até o palácio real falar com o Rei de Bosta Nenhuma.

Sentado em sua enorme cadeira real, com toda a pompa, serviçais, bobo da corte, coroa, jóia e rainha à tira colo, o Rei marcou uma audiência com os representantes do povo.


- Majestade - disse o carpinteiro mais velho do reino - Bosta Nenhuma está um inferno! Não se consegue trabalhar com a barulheira feita pelos feiticeiros do Norte!


- Hum - pensou o Rei distraído com seu anel de rubi - Falarei com os feiticeiros do Norte, fique tranquilo velho carpinteiro, eles não irão mais te atrapalhar.


O carpinteiro agradeceu várias vezes ao Rei, e saiu fazendo reverências. O anúncio do próximo representante logo não tardou...


- Majestade - disse o maior fazendeiro do Reino - Minhas ovelhas estão assustadas! Já perdi muitas por causa dos feiticeiros que fazem duelos próximos à minha fazenda.


- Hum - pensou o Rei distraído desta vez com uma sujeirinha em sua luva impecavelmente branca - Limitarei os duelos próximos à sua fazenda. Fique tranquilo fazendeiro e cuide de suas ovelhas!


O fazendeiro fez uma reverência e saiu. O Rei esperava o próximo representante, mas uma barulhada às portas do palácio foi ouvida. Preocupado e curioso, o Rei mandou guardas averiguarem a situação. Logo um deles voltou com a informação...


- São os feiticeiros Majestade! Eles exigem que o Vsa. Majestade abdique o trono de Bosta Nenhuma! - disse o guarda apavorado.


- Hum - pensou o Rei olhando pelo vitral da sala de audiências reais - Talvez eles estejam certos... afinal eu não tenho poderes, não lanço feitiços e os camponeses não têm medo de mim. Chame o feiticeiro mais poderoso que está lá fora para uma audiência comigo.


Abismado, o guarda fez uma rápida reverência e saiu correndo pelo palácio. Algum tempo depois entram aos berros cerca de quarenta feiticeiros com seus chapéus e mantos espalhafatosos.

Um deles, vestindo um longo manto azul profundo, foi o primeiro a se dirigir ao Rei.


- Majestade! - gritou o feiticeiro - EU sou o mais poderoso feiticeiro de Bosta Nenhuma! E exijo que abdique o trono imediatamente!


Em polvorosa o resto dos feiticeiros começou a contestar o poder do feiticeiro e uma discussão sem limites começou.

O Rei então levantou-se do trono e bateu palmas sozinho até que todos prestassem atenção em seu irônico rosto.


- Muito bem - falou o Rei olhando para os feiticeiros - Se vocês conseguirem me responder à uma pergunta decentemente eu deixo o trono e até mesmo o reino para sempre.


Atônitos, os feiticeiros fizeram silêncio esperando a pergunta do Rei. Alguns até debocharam e riram baixo, afinal eles eram tão inteligentes e sábios que não se preocupavam com o que poderia vir de um reles homem com uma coroa na cabeça.


- Alguém sabe me dizer por que nosso reino tem o nome de Bosta Nenhuma?


Um silêncio mortal seguiu-se à pergunta do Rei. Nenhum feiticeiro sabia responder aquilo, e mesmo alguns estando ali antes mesmo do primeiro rei aparecer, aquela pergunta parecia ser impossível de ser respondida.

Até que uma voz infantil surgiu de lá do fundo... e uma menina de cinco anos apareceu na frente dos feiticeiros dizendo:


- Eu sei Majestade! Eu sei! - garantiu a garotinha ávida por atenção com seu curto braço levantado. O Rei sorriu para a garotinha e fez sinal para que ela se aproximasse.


- Então, criança, qual é a resposta da minha pergunta?


A garotinha virou-se para os feiticeiros que a olhavam surpresos, olhou rapidamente para o Rei e antes de responder à pergunta deu uma risadinha.


- O Reino de Bosta Nenhuma tem esse nome porque não é um reino de verdade.


Os feiticeiros abriram a boca para falar algo, mas tiveram a súbita impressão de que aquilo não era necessário. Haviam entendido o recado.

O Rei por sua vez, abaixou e beijou a bochecha da garotinha antes de deixar a coroa no trono e sair pelos fundos do palácio. Todas as pessoas no local se retiraram... guardas deixaram as armas e as armaduras, os feiticeiros deixaram as varinhas e os chapéus pontudos. E uma solidão tomou conta do lugar, exceto pela garotinha que estava sentada no trono com a coroa nas mãos tão pequenas.

O último a sair e passsar pelo sala de audiência foi o bobo da corte, que deixou suas argolas e seu chapéu com guizos perto do trono. Ele teve um rápido pensamento e voltou-se para a garotinha...


- Qual é o seu nome? - perguntou o bobo da corte.


- Imaginação - sorriu a garotinha antes de desaparecer junto com todas as outras coisas existentes no Reino de Bosta Nenhuma, que não era um reino de verdade.

23 de janeiro de 2007

Os Pombos de Toni


Antônio não tinha nem um tipo de doença, inclusive sua saúde era invejável e muito comentada por todos os seus médicos. "Que bebê lindo! Forte, corado! E olha como está com um bom peso!" - já dizia a pediatra.
Quando fez 50 anos, Antônio resolveu fazer um check-up completo só por querer mesmo. Essa decisão foi apoiada pelo cardiologista, pelo otorrinolaringologista, pelo oftamologista e até mesmo pelo proctologista. Todos assentiram com a cabeça e deram um tapinha nas costas de Antônio quando divulgou ele a sua idéia.

Durante quase três meses, Toni (como era chamado amistosamente) fez os mais bizarros exames médicos existentes e tomou várias doses daquela coisinha legal que faz seu cérebro brilhar durante o encefalograma. Fez contagem de hormônios, de glóbulos vermelhos, de glóbulos brancos, de lipídios e de quase tudo que pode ser contado no corpo.
Retirou cerca de 500ml de sangue só para completar todos os exames previstos na tabela do plano de saúde e encheu 3 potinhos de urina, 2 de sêmen e 4 de fezes. Tudo como previsto.

O resultado de todos os exames era como uma paisagem de verão para os médicos de Toni. Todos disseram que ele poderia viver mais de cem anos, se tomasse algumas vitaminas é claro. E que nada parecia afetar aquele corpo de cinquenta anos com idade biológica de trinta e três.

Um ano depois, Toni estava cansado de sua saúde perfeita e queria fazer outro check-up completo, mas seus médicos não recomendaram e mandaram Toni de volta para casa.
No caminho, Toni parou em uma praça lotada de pombos e sentou-se em um dos bancos vagos. A praça era bem grande e várias pessoas passavam por ali para cortar caminho entre um lado e outro dos arredores.
Toni prestava atenção nos pombos, nas pessoas e no grande espaço à sua volta. Aquilo começou a lhe dar uma aflição súbita e todos pareciam andar e se movimentar comos os pombos no chão, tudo ficou cinza e todas as pessoas começaram a prestar atenção em Toni. O coitado desandou a gritar e sair correndo pela praça como um completo louco.

Ao chegar em casa ligou para seu psiquiatra e marcou uma consulta de emergência, mas disse que seria impossível sair de casa com os pombos rondando à sua volta. O psiquiatra tentou acalmá-lo e dizer a ele que eram apenas pombos e nada mais. Não adiantou. Toni se matou pouco antes do Natal e deixou um bilhete onde explicava sua aflição súbita por pombos, e que aquilo era uma doença que os médicos não previram.
Os médicos é claro ficaram transtornados e obcecados com o bilhete que foi lido durante uma conferência anual de medicina na pequena (e roceira) cidade de Toni.

No dia 5 de Janeiro o corpo de Toni foi exumado e estudado pelos melhores médicos psiquiatras e especialistas em doenças psicobiológicas. Nada anormal foi encontrado e os médicos colocaram as culpas nos pombos daquela cidade.
Uma matança incontrolável foi iniciada pelos habitantes e um decreto estadual foi feito após o escândalo atingir proporções inimagináveis. Várias pessoas começaram a cometer suicídio e declaravam em cartas que foram abatidos pela Doença de Pombottoni, que recebeu status de "fobia-psicobiológica-autoimune-indiretamente-contagiosa-epidêmica-universal".
A OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou epidemia eminente em todas as regiões do planeta e caça aberta a todo e qualquer pombo no mundo.

Um surto psicótico começou e milhões de pombos foram abatidos, principalmente, por gás tóxico. A capital da França, Paris, foi evacuada por dois dias e uma mega-bomba de gás foi lançada. Ela matou cerca de treze mil pombos só na Grande Paris e atingiu as cidades próximas através da deslocação das massas de ar.
Em Nova Iorque um sistema ultrasônico desenvolvido para ser ouvido apenas pelos pássaros (o maior número possível de pássaros foi retirado da área de alcance, exceto os pombos, é óbvio), teve seu volume aumentado acima do previsto e qualquer pombo que estivesse em um raio de 5Km teve a cabeça explodida pela vibração do sistema sônico. Todos os demais pombos no alcance de até 15Km morreram instantaneamente.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, todo e qualquer pombo foi abatido à tiro. No Camboja, o governo oferecia uma cesta básica para as famílias que conseguissem matar, no mínimo, cinquenta pombos. O Japão construiu grandes telas nas maiores praças públicas do país, e desenhos com cores brilhantes e piscantes que foram transmitidos causaram o maior (e único) ataque de epilepsia entre aves. A China divulgou nota oficial declarando que qualquer pombo em seus territórios era proveniente da Europa e da América e que eles deveriam se responsabilizar pelo abate ou teriam que sofrer as consequências. Após esta declaração, foi o único país a receber todos os sistemas de abate a pombos desenvolvidos pelo mundo.

A Doença de Pombottoni causou a morte direta de quarenta e cinco mil humanos e nenhuma outra espécie foi abalada. A morte indireta (causada pelos sistemas de abate) de seres humanos alcançou o número assustador de cem mil pessoas e um número incalculável de animais das mais variadas espécies, desde formigas à girafas.

Dois anos depois do início da matança generalizada de pombos urbanos, o último foi abatido em Assembléia Geral da ONU.
A espécie do pombo (Columba livia domestica) foi declarada, com sucesso e festas mundiais, extinta. Este dia é comemorado por todas as nações da Terra. E é de bom grado ter um estátua ou monumento em prol dos Mortos por Pombottoni na sua cidade.

(ah, e isso não é lenda urbana não hein!)

22 de janeiro de 2007

Os Solares


Eles estão por toda parte, no meio da multidão, nas ruas, nos escritórios, nas escolas, nos elevadores e até mesmo na tela da TV.
Você os reconhece por algo que não consegue definir. Não sabe dizer se é o sorriso, o brilho diferente nos olhos, a maneira como fala ou se é apenas mais uma pessoa encantadora. Mas não pense que eles cativam a todos, não mesmo. Eles apenas são eles mesmos, e muitas vezes isso incomoda muita gente.

Os Solares têm senso prático quando estão animados, resolvem problemas de forma simples e estão na linha de frente para defender suas posses e seus "patriotas" da forma que lhe for conveniente. Geralmente eles não são muito conhecidos, você só repara neles quando há mais de um na mesma empolgação de um local, e quando ambos se conhecem é claro.
De primeira um se incomoda com o outro, mas sempre há um lado mais tolerante à princípio e por fim não há quem segure a combinação explosiva que dois (ou mais deles) conseguem formar.

Eles se viram como podem, passam rápido entre as pessoas, enfrentam os temores alheios e ainda têm tempo para sorrir. Mas nem tudo são flores para os Solares.
Experimente contrariá-los quando estão certos... (ou até mesmo quando apenas acham que estão), interrompê-los em algum progresso ou passá-los para trás. Raios e trovões irão pairar sobre a sua cabeça de forma a ameaçá-lo constantemente até que mude de idéia, caso contrário, sofra as consequências.

Apesar de tudo, os Solares são uns amores quando brilham como o Sol. Quando estão rindo, quando estão completamente envolvidos com um trabalho prazeroso ou quando estão com seus "afilhados" por perto.
Divertí-los é algo que muitos conseguem, mas eles gostam muito mais de divertir os outros e de receberem reconhecimento por isso. Eles são alegres e sinceros, mas podem sofrer de tendência ao mal humor momentâneo. Quando isto acontecer deixe-o de lado até o momento em que ele requerer a sua atenção.

Lembre-se eles estão por toda a parte, e estão de olho em todos à sua volta. Não importa que você seja, chegará uma hora que uma forma extraordinária de encantamento súbito por alguém irá aparecer e então, você reconhecerá como um Solar.

20 de janeiro de 2007

Asas e Cera


A história de Ícaro e seu pai é um dos melhores contos da mitologia grega. Não só por conter o mesmo dramalhão encontrado em outros contos, como de Orfeu e Eurídice, mas por me ajudar a aprender uma lição. Uma que, é claro, já observei em algumas seletas pessoas.

Quando chegamos à uma certa idade, ali no meio do caos adulto e da ternura infantil, a mente nos prega uma peça todos os dias. Estamos sempre loucos, nervosos, ansiosos, insatisfeitos e sexualmente insaciados. E não me venha dizer que é mentira. Nossas fobias, nossos medos e nossas insanidades ocasionais nos pegam sempre de surpresa. E o que fazemos? Na maioria das vezes nós vamos para o lado desgostoso, engolimos as coisas e nos desesperamos momentos depois. E é assim que deve ser.

Porém, quando se chega ao ápice da tortura pessoal, percebemos que a queda vem em seguida e aí é que está a grande jogada.
As pesssoas realmente não se importam umas com as outras, estão sempre preocupadas com problemas pessoais ligados indiretamente às outras pessoas e só. Só se tem noção disso quando a porta da terceira infância se fechou de vez e seus conceitos de liberdade são totalmente diferentes do que eram há alguns anos atrás.

A principal necessidade é a de asas para voar. Para esquecer um pouco daquele mundo familiar que lhe traz tantas memórias do passado. Memórias essas que são tentadoras para surtos histéricos e crises existenciais.
O único problema disso tudo é estar certo das asas que arranjou e das limitações que elas ainda lhe trazem. Como na história de Ícaro, que após anos montando com seu pai as asas que trouxeram liberdade a ambos, ficou tão fascinado com elas que alcançou altura suficiente para ter a cera, que colava as penas das asas, derretida pelo calor intenso do Sol e morreu após a queda no Mar Egeu. Nós também podemos sofrer da mesma tragédia, exceto pelo fato das asas serem apenas uma metáfora e a morte não ser necessariamente o gran finale.

Alcançar o vôo para uma doce escapatória é algo que deve ser pensado e avaliado. Se quiser apostar todas as fichas, tudo bem, mas a aventura deve lhe trazer mais experiências boas do que ruins, ou então o preço e o tempo gastos não serão recompensados.

Se for inteligente e não voar além do que suas asas permitem (ainda), o destino final da primeira etapa será um local seguro para repensar as vivências e construir novas e maiores asas. E nada poderá ser melhor do que obter esse reconhecimento através de si mesmo.

14 de janeiro de 2007

A Arte de Perder


Baseado no poema "One Art" de Elizabeth Bishop, com os fundamentos do filme Em Seu Lugar (In Her Shoes).

A arte de perder é algo muito complicado. Vai além dos limites da minha compreensão.
Eu perdi as contas, os dias, as semanas e os meses desde que tudo perdeu o sentido. Perder é não saber quem te ouvirá e te animará no dia seguinte, na manhã seguinte e em cada telefonema essencial.

Para muitos pouco importa, para poucos importa muito.... perder é sentir falta, é ficar doente, é ficar chato com os outros, é entrar em desespero.
Para suprir a falta não bastam lágrimas, retratos, frases curtas, baladas tristes... perder é algo realmente insuportável.

O que você perdeu? (Escreva). Isso é algo que te importa agora? Que te consome e arde em sua cabeça? Suas noites ficam claras, seu sono é inexistente.... porquê? (Escreva).
Eu perdi um império, três vidas, minha razão e todas as minhas forças. E mesmo assim, perder você ainda não me cabe... não me parece verdade.

Todas as pessoas me parecem ter desvios de vaidade. Mas porque você? Sabes muito bem que sua ausência me pertuba, me tira o sono, me acorda tarde e me olha de soslaio. Você está em todos os cantos, em cada hora, em cada pensamento brando e em todas as páginas em branco que deixei de preencher com a minha habilidade agora falha, fraca, quase detestável.

Meu coração está vazio... e eu te carrego no meu coração, mas sua ausência o deixa incompreensível, rebuscado. Isso sim foi e é um desastre.
Eu te carrego no meu coração.