17 de dezembro de 2010

Longo recado na geladeira

Olavo, deixei dois sacos de ração pro gato, faça o favor de dar a comida pra ele, ninguém precisa morrer só porque você decidiu acabar com a própria vida. Outra: não me ligue de novo. Estou de saco cheio de ter que vir aqui e tentar colocar as coisas em ordem, e tendo que dizer tudo aquilo que eu já te disse pra você acabar concordando com tudo, mas colocando sempre um "mas" no final. Sabe, chega. Se toca. E se não quiser mais o gato, eu venho aqui e pego, agora não deixa ele passar fome.

Pela última vez, Olavo, resolve a sua vida, mesmo que não tenha nada a ver comigo, aliás esqueça isso de "comigo", isso acabou, você sabe. Sabe, ninguém quer isso, nenhum de nós dois vai viver qualquer um dos nossos ideais, então faça como eu e trate de inventar outro, mas sem foder ninguém e nem criando problema, como você faz agora. Não vai sair por aí trepando com três ou quatro ao mesmo tempo, ninguém tem cabeça pra isso e nem é isso que você quer, você sabe. E também não fica enrolando uma pessoa qualquer, não vale a pena, não vai levar a lugar algum.

Cara, aprende a deixar de ser idiota e volta a falar direito com a sua mãe. Foda-se o que ela fez ou deixou de fazer quando você nem tinha noção do que era vida, foda-se, ela não é a mesma pessoa que era há dez anos atrás por mais que seja igual em tanta coisa, e porra, ninguém cria filho nenhum pra ele ficar sendo grosso ou calado na mesa sem explicar o motivo. Já te disse que ela é uma idiota também de não impor as conversas, mas você também não faz isso, a diferença é que talvez ela não tenha muito mais chance de mudar e você tem, ou ela tem também, mas depende de você, assim como você depende dela. Família é tudo o que a gente tem, Olavo, mesmo que não seja a de sangue, e no caso a sua é. Mas você não tem ninguém, Olavo, porque você não quer, porque você não deixa. Se te acontece uma merda, não é pro ombro deles, nem de ninguém que você corre, sabe, que porcaria você tem na cabeça?

Eu lavei a louça de milhões de dias que você largou na pia. Quando voltar, trate de não deixar aquele bando de toalha molhada pelo banheiro, uma delas estava nojenta.

Devo passar aqui na semana que vem pra pegar os dois últimos vasos de planta, eu não pude pegar hoje e enfim, minha prioridade era o gato. O seu gato.

Cuide-se.

E.

PS: Deixei um filme em cima da TV que vi esses dias, talvez você goste, duvido muito, mas dane-se. Veja. Beijo.

5 de dezembro de 2010

Conchas

Naquele estranho primeiro dia o Sol estava encoberto, mas ainda assim de ponta a ponta a areia da praia emanava um calor úmido e levemente pegajoso.
Sentado ali há alguns minutos, a observar em silêncio o mar, notou que os olhos nada viam e os pensamentos também estavam ali mornos, volumosos, como as nuvens no céu. Entre os mais simples, talvez o mais baixo e menos cinzento, estava uma dúvida ordinária: por que não haviam conchas ali? Nem toda praia tinha conchas na areia, isto era certo, mas por quê?

Como de costume, levou o simples ao alto de uma torre abstrata, afirmando para si que naquela praia o mar não trazia surpresas, tesouros ou até mesmo coisas do passado. O mar dali era e sempre seria o mesmo, por mais que os céus mudassem ou pessoas com suas tralhas perdidas esquecessem algo, ele resistiria igual e presente, sem desejos divinos - teria acontecido ali alguma vez um naufrágio? - tal qual um cenário, um palco, onde é possível mudar a iluminação e outros detalhes, mas que ainda depende - e riu-se - da percepção dos passantes e dos atores.

Desenhou uma concha com o dedo. Mal terminara o desenho e começou outro, até que cinco ou nove conchas de diferentes tamanhos e formas estivessem desenhadas a um braço de distância.

- O que você está fazendo? - E ao invés de um susto, foi tomado por uma decepção infantil, portanto, verdadeira.
- Conchas. Não há conchas por aqui, então resolvi fazê-las. Na verdade, só eu poderia ter feito isso.
- Deus também e melhor que você.
- Duvido muito, já que eu estou aqui e eu mesmo as fiz. Se você quiser, inclusive, posso fazer outras. Deus, no entanto, não vai poder te atender como você supõe.
- Boa. Mas isso aí no chão não são conchas, são desenhos.
- Claro, e você é Magritte para me dizer isso. Se for assim, te digo também que isto aqui não é chão.
- Não chegaremos ao fim disso se continuarmos. Vai cair?
- Daqui a pouco.

Esperou por um momento, sabia que algo deveria ter acontecido, faltava um ato ou gesto, mas foi inútil fazer da presença alheia um lugar comum para seus desejos. Quase sempre era inútil. E voltando-se para o mar, sabia que toda e qualquer mudança depende daquilo ali, de fazer as coisas - como as conchas na areia - e havia feito o suficiente.

Quase dois anos depois, quando retornou àquela praia, sozinho, surpreendeu-se ao encontrar uma concha, branca e frisada, do tamanho de uma unha. Estava errado sobre... sobre o quê mesmo? E um único pensamento tornou-se denso e opaco; restava a dúvida.

Neste dia fazia Sol, mas havia uma única nuvem no céu, encobrindo um pedaço do azul.