30 de agosto de 2008

Noite (sede, e lábios secos)

Veio suave e gostoso como uma brisa morna. No início, apenas no olhar, os cantos abriram-se em outras dimensões, o chão ficou repleto de flor e havia música por toda a casa.

(e pelo ventre subiu-lhe uma vontade, um raio devasso, uma louca paixão.)

Era noite de um dia comum, não, foi madrugada de um novo dia. Mas nada impedia que o céu clareasse de estrelas; enquanto escorriam as horas, o destino conspirava contra, queria atear o fogo da manhã e clarear todas as mentes, mostrar a realidade sob o único e onipotente Sol.

(desprendeu os braços do próprio corpo gelado, úmido. Um passo, aproximou-se, voltou. Dois passos. Tão perto; silêncio.)

O quarto esvaziou-se de cheiros ou cores. Todo ser diante do cinza inodoro libera seus instintos. É mais forte que uma loucura, mais rápido que um susto.

(e os olhos percorreram as tentativas, as chances, a frágil segurança de um igual adormecido. Suspirava.)

Nada se movia; o tempo seguia travado num soluço do desejo. Faria toda a oportunidade, ali naquele momento, se encarassem a continuação dos atos; da peça sem falas.

(de repente correu, mas não tão depressa, despejou a mente, a alma, o corpo, o embrulho de idéias, num único movimento; seco, macio, livre e absoluto.)

Cantaram pássaros. E o mundo inteiro recolheu forças para o giro, rodou penosamente suas montanhas e mares, sorrindo aos que se esforçam contra os próprios receios.

(com os olhos ainda fechados, mergulhou num adágio sentimental, para enfim esconder-se nos sonhos.)

Amanheceu muitas e muitas vezes desde então.

22 de agosto de 2008

Azul

Pensava além. Não havia problema em pensar diante do mar, se há um único lugar onde o infinito é visível, é ali, naquele horizonte céu-mar, a tal reta sem fim que em algum ponto esconde um segredo. Nem gostava de azul - o que era mentira, pois era a sua cor favorita quando jovem - mas podia encontrar os pensamentos todos ali dispostos, ondulados numa mesma bacia, numa mesma jarra fresca e colorida.

Por muito tempo o medo de existir lhe movia para a vida; essa rotina que ocupa a mente sem nos deixar sofrer, exceto quando há angústia na alma, dessas não se pode escapar. Mas vivera até ali algumas vidas, fases ou épocas na verdade, vida é só uma, dose única. Já havia se conformado com todas as memórias, delirado com o futuro, a grande surpresa foi cair em si e enfrentar o hoje; olhando novamente pela areia, mas do alto do apartamento, hoje parecia grande demais, um enorme e complexo momento, porém leve, sentí-lo era fácil, difícil era acompanhar seu ritmo.

Havia muito mais beleza na própria beleza das coisas, toda vez que sorria - e estava sorrindo - procurava por alguém, mesmo que só na cabeça, desejava compartilhar o rosto, uma brisa de esperança que erguia as bochechas.

Sentiu que as emoções agora se identificavam como formigas ligeiras, obviamente sem aquela organização; conforme o seu novo ideal, toda esse organizado modo só atrasava o reconhecimento das coisas, que viessem lágrimas e risos uns por cima dos outros, que vontade e segurança se engolissem na linha de chegada, estava além do fato de ser desejado, tudo fluía para o desejar, sim, desejar! Havia de desejar puramente, enlouquecer, rolar de ansiedade e despreocupação.

Deu as costas para o azul; ali dentro estava parte do dia, deslizaria normalmente através dele, pelo menos enquanto houvesse chão sob os pés.

16 de agosto de 2008

Canhedo Público

A vida não pode ser simplesmente esquecida; não se pode apagar uma história.
Em nossas inquietas mentes habitam as noites, os dias, as vozes esquecidas anos antes. E com elas imagens, fotografias, sequências inteiras das manhãs de uma época; não há corretivo que suprima aquelas palavras trocadas entre os seres.

E vejam além dos sorrisos dos quadros, o horror do artista ao cobrir com o veneno da sua arte, seja ela líquida ou corpórea, uma outra etapa, um outro esboço de um querer.
Ardem ainda em muitos corações as brasas de um teste; vivem ainda muitas pessoas em seus jardins encantados. Seus segredos e suas memórias. Seu único conforto diante da realidade bruta e carnívora que lhe arranca os minutos no ônibus, num banho longo.

Mas eis o passado envidraçado, posto atrás dos olhos; um homem velho ou uma jovem senhora, suas marcas, seus odores, seus aniversários são todos os amigos e inimigos, são a família e os desconhecidos. São colina ao vento; e os sinais deixados em casas, as marcas em bancos ou árvores, a fortuna de um pequeno nas páginas emboloradas, lotadas de desejos e ansiedades de um terceiro;

Vem a catarse, o estranho à porta, e sentí-lo agora é diferente, são outras vidas no mesmo chão, na mesma cama. São rio e lava ressequidos, transformados.
A mulher distante, o jovem garoto; agora sério, agora mística; o casal separado, os irmãos de mesma ninhada, o ódio e o amor, incapazes de reagirem entre si, geram instinto, embaraço, é uma fantasia.

Em algum lugar jorra água de fontes frescas, em outro apodrece a carcaça jovem de um rato, mas ninguém verá; ficam aqui, entre estranhas palavras, segredos, verdades e ilusões de algum tempo que logo ninguém irá lembrar. Vive-se à cada hora um mistério.
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este post é dedicado à Jana Cambuí por suas recomendações ao blog. E ela pode ser lida em O Infinito Público.

4 de agosto de 2008

Anos Difíceis

Poucos sabem como é sentir-se preso, afogado em meio às próprias angústias. Viver com fardos que sufocam as idéias faz parte de qualquer período de grandes mudanças; ela ainda não compreendera isso.

São anos difíceis, é o refluxo de toda uma pequena e importante etapa. Vive-se por acidente, vive-se no perigo constante do fim de barragens, represas tão sólidas de segurança e conforto, tudo acaba. Para ela não fizeram ritos, não colocaram-na trancada durante dias em algum lugar e tiraram-na de lá mulher feita, não. Era mulher só por saber, por fatos e realidades. Mas então e o abstrato? Teria que descobrir sozinha que os dias mudam, e passam, e voam, logo descem pela garganta como avalanche, viriam lágrimas, centelhas de raiva, solidão. Seria quase nascer de novo, sentiria medo de colocar os pés na rua, de respirar o ar, fraquejaria diante de uma simples escolha antes de dormir ou logo depois de acordar. Perderia chances e não iria conseguir consolo com coisas banais como antigamente, tudo agora trazia apenas o sentimento de passagem.

Sentenciou o fim de todas as coisas, menos da própria vida. Amava viver é claro, tinha os seus. Podia a qualquer momento refugiar-se na felicidade alheia e compartilhar a sua dor sem sentir-se egoísta, pois todos fazem a mesma coisa. Todos nós somos uns pelos outros; internamente, depois dos egos, depois do medo, lá em algum ponto escuro há o eterno afeto, uma força que berra e nos protege de nossos próprios venenos.

Tinha agora esses direitos e deveres inventados, essas bobagens, e só tomou consciência de que até agora tudo foi fácil demais enquanto abraçava, aos prantos e aos risos, aqueles seus, aquelas suas; seus melhores amigos.