Atormentada pela chuva, seguiu pela viela com os sapatos roxos, uma busca incansável o dia todo, enfrentou cada buraco do centro com a melhor das caras, agora nem tudo estava tão bem.
O brilho se fora, o azul também, escorria o cinza por cada canto, alguém espremia as nuvens lá em cima, fazendo-as largarem aos berros toda água possível.
Mortais é claro, completam seu sofrimento da melhor maneira. Encaixaram-se em carros, amontoaram-se em todos aqueles restaurantezinhos com ar não renovado, secos e com comida sem sabor, afinal a chuva não podia matá-los, mas o que dizer de todos os tratamentos de cabelo e sapatos bem cuidados? Estes infelizmente, apesar de durarem mais que a carne, não são mais os mesmo depois do contato com a simples mistura entre dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.
Ela não, ela seguia. Com o pomposo guarda-chuva laranja-até-na-neblina, desviava dos bolsões e das poças, sem peso, deslizava e dançava, subindo e descendo os pés, direita e esquerda, lá estava a última opção.
A livraria burguesa não ficava na rua e sim dois andares acima do nível do alagamento. Só era possível saber da sua existência por uma antiga placa, e claro, para aqueles que detinham a informação há séculos a placa não tinha mais função alguma.
Subiu a escada antecipando a vitória, finalmente o teria nas mãos, agarraria-o em casa depois de largar as roupas e os sapatos longe, colocaria aquele vestido velho e entraria debaixo das cobertas antes de começar a leitura tão esperada. Estava certa quanto ao fato e conseguiu o livro ali no meio do cheiro de madeira velha e papel, sorriu para o velho dono, o judeu de nome difícil, e foi-se novamente pela escada.
Mortais é claro, completam seu sofrimento da melhor maneira, mas ela não, ela esquecia da regra básica. Os deuses só a lembraram da sua posição quando, ainda entorpecida pelo bem material adquirido, recebeu publicamente a maior poça d'água da sua vida direto do asfalto, no rosto e em todo o corpo.