23 de abril de 2012

olho d'água

e veja esses poços circulares, de dimensão infinita, conjuntos equidistantes, numa terra onde não chove e cujo silêncio é o chiado morto de uma massa humana que respira desigual; vislumbram nas beiradas o seu próprio reflexo, uma imagem rasa cultivada pela ausência do vento, e ao redor de cada poço tantas outras almas demoram-se nesta sede;

no centro de cada poço habita uma ninfa entediada, uma escrava dos deuses, e que faz de sonhos perdidos pequenas pedras brilhantes; vez ou outra as ninfas atiram as pedras na água e esperam - famintas - as ondas chegarem às bordas e de lá voltarem causando um grande desespero aos narcisos, que se atiram em busca da própria imagem.

os que restam uivam e choram diante do espelho retorcido, e suas lágrimas alimentam cada círculo até que a água permaneça estática e suas existências voltem a ter sentido.

certa vez, uma ninfa atirou-se ao poço.

9 de abril de 2012

pistache

eu tinha segurado certa decisões, Olavo, por muito, muito tempo; cadelas raivosas na minha cabeça que latiam ao portão para afugentar o bom senso, ou a falta dele, depende muito do ponto de vista.

mas eu acabei me sobrecarregando de pequenas mudanças que no final das contas não significavam muita coisa, quase nada para ser franca; eu lembro que cheguei àquele novo apartamento e achei que  - ali, estática, observando como a luz estava opaca por causa do dia nublado - todas as minhas palavras de ternura ao meu ego estavam entaladas na garganta, na minha fonte de autoproteção, como queira.

engraçado como esses pequenos-grandes-insights da mente são como chamas e querosene; desconfortável como eu estava, jamais imaginei - ok eu poderia supor muito superficialmente - que um ato singelo vindo de você, uma palavra tão vazia de outros significados, poderia trincar esta enorme geleira que eu mantinha sobre o que eu pensava a seu respeito e, pior, sobre nós, não depois de tudo o que eu já tinha ouvido ao longo dos últimos poucos anos.

- pistache, quero pintar uma parede daqui do quarto de pistache.

eu adorava sorvete de pistache, adorava pistache, e eu até mesmo gostava do som que a palavra pistache possuía e seu significado esverdeado, mas ouvir você trazendo à baila essas minhas associações foi desastroso; me pareceu completamente falsa a sua vontade - igual a tantas outras vezes você me disse alguma coisa com uma senhora convicção tão fina quanto um papel de arroz - como se afirmar que pintar uma parede de pistache, naquele momento, fosse uma linha muito agradável em um diálogo que um autor coloca para preencher o tédio mortal que vinha desde as últimas vinte páginas.

Olavo, eu olhei pela janela e o dia permanecia pálido, olhar o céu era como olhar para o espaço que havia entre nós: uma densa camada intransponível, turva e branca; sempre imagino que céus assim nunca irão abrir outra vez e essa era a minha impressão sobre nós dois, as coisas nunca ficariam claras ou - numa dupla interpretação - estavam claras demais.

não lembro de ter comentado qualquer coisa que fosse relevante depois naquela tarde, e a primeira coisa que fiz ao sair de lá foi comprar um sorvete, por mais que um pesadelo acordado onde eu só encontraria sorvetes de pistache nas cercanias me viesse à cabeça; o que eu quero dizer é que eu estava sóbria por dentro, muito cansada e lúcida da órbita de emoções que vinha seguindo.

ainda assim, me faltava coragem; e, céus, como eu me sentia burra.