28 de junho de 2012

isento

- como você quer que eu fique... - e respirou ao tentar recolher as palavras, todas afoitas, crianças chorosas em busca de um silêncio, um conforto - com todos olhando e fazendo a mesma pergunta que eu me faço neste momento: o que eu estou fazendo aqui e quem sou eu?

Olavo não sabia. Desejava apenas que nada estivesse errado em sua tentativa, na verdade nem sabia se levar Estela até lá tinha sido uma tentativa ou uma provocação; um propósito para que as coisas escorregassem um pouco mais pro ralo de saída da boa consciência. Olavo gostava do sabor da isenção, das somas que davam zero; Olavo apreciava sardas leves.

- o que você quer afinal? não é suficiente? nunca é suficiente. nunca vai ser suficiente. você deveria ir embora.

era um alvo, uma receptora perfeita de dentadas do ego alheio insatisfeito; sentia-se amarga,  frouxa, deslizava para dentro de si num tempo próprio, único e estático; Estela comportava-se como um buraco negro, tropeçando nas próprias ideias e engolindo toda e qualquer mágoa; queria ir, queria deixá-lo ali naquela cena montada onde os dois almejavam internamente serem apenas espectadores dos próprios desejos e não protagonistas errantes; com frequência Estela ultrapassava o tempo gasto para se pensar num momento como aquele: distante de todos os outros discutia com Olavo a situação que tinham se incluído, num comportamento bizarro a olhos vistos, e arranhavam-se, rangiam os dentes em desgosto, mas de cima de seus tamboretes, inabaláveis; Estela tinha sardas leves.

- vamos embora, Estela? desculpa, vamos embora? deixa eu dizer tchau aos outros e vamos?

Olavo retirava-se.
Estela cedia.

21 de junho de 2012

Estrada

eu já estava com trinta e dois, trinta e três, não lembro bem agora a minha idade; trinta e dois. sei que era trinta e dois por que você, Olavo, já havia chegado aos trinta e cinco.

estávamos, eu e você, numa disputa simples e cotidiana de argumentos, sem acidez, sem mal estar; você dirigia o carro e eu segurava o seu celular acompanhando o nosso trajeto, um pouco sem notar, já que eu conhecia o caminho, mas você não confiava em mim (apenas uma vez, por algum momento, mas não convém lembrar agora). por uma besteira qualquer do lugar o sinal desapareceu, e seu comentário de "ok, tudo bem, melhor assim que não consome tanto" do seu eternamente citado dinheiro me pareceu tão comum à situação que apenas larguei o celular entre as minhas pernas e nós dois nos desligamos do que acontecia;

eu estava perdida, sem paranoia, sem transtornos, mas imersa em devaneios múltiplos sobre o calor, acidentes de carro e a ausência há muito sentida da sua mão sobre a minha; falei sobre as vacas, uma conversa que durou 22 segundos;

houve um silêncio de todas as coisas, nenhum outro carro à vista, nenhuma construção ou referência que não fosse a estrada, você chegou a diminuir a velocidade e abrir um pouco mais o vidro deixando o cheiro de terra fresca entrar abundantemente.

como um raio o celular cortou ao meio nossa tranquilidade, um nome qualquer, um número qualquer, mas que você se recusou a atender, mas não negou a chamada e fixou os olhos no centro da estrada como nunca fazia; Olavo você me evitou de forma pétrea e eu sequer tinha feito algum comentário, nem ao menos dentro da minha cabeça e dali em diante naquele dia todas as suas frases e comportamentos tornaram-se robotizados, mecânicos, até mesmo sorrir e aproveitar parecia - aos meus olhos - em você uma atitude forçada para engolir a realidade dos seus planos, como se curtir um mero momento de lazer fosse não só uma obrigação que você empunhava-se em praticar, mas um verdadeiro trabalho contra os pensamentos que vinham à sua cabeça.

demorei muito, muito tempo, Olavo, para perceber que eu fazia parte dessa sua eterna rotina de trabalho; e de forma proposital; não que eu fosse uma completa experiência, uma cobaia cega da sua decisão de mudar as coisas na vida, não posso ser tão dura com você a este ponto, mas eu era apenas mais uma peça na sua enorme máquina estratégica de evitar tocar os sentimentos, de se ferir, de errar, e quando passei a apontar a falha estrutural dos seus planos não apenas lhe indicando isso, mas "sendo" verdadeiramente um erro de cálculo, você optou pelo descarte, pela fuga; tesão e apaixonamento, lubrificantes dessa engrenagem medonha construída por você, foram imediatamente cortados, e eu - o que havia de sobrar para mim? -, eu terminei de mãos atadas, do mesmo jeito que comecei, como pude notar depois de tanto tempo.

9 de junho de 2012

primeiro relato de Laura

não considerei colocar o vestido amarelo na mala já que não iria à festa alguma; saí com a única decisão de abandono do conforto no qual eu estava afundando e, necessariamente, trocaria por outro ainda maior caso permanecesse ali estirada por mais tempo.

claro que, como boa menina, trouxe uma caixa de bagulinhos sentimentais, coisa pouca e pequena, mas um fardo emocional que ocupou nas noites seguintes todo espaço vazio que encontrava entre as minhas dúvidas e reflexões mais simples.

eu sabia apenas que não poderia me drogar, trepar ou encarar uma piranha de frente pelos próximos meses, e pra mim isso era como viver engatada na segunda quando o mundo exige que você viva na quarta e o pé no acelerador; sóbria para sobreviver, um lema de guerra, selvagem dentro do limite urbano.

para uma qualquer, sem sal, cheia de referências óbvias e nenhuma vontade, eu estava apostando alto no erro, e não no tipo de erro clichê, eu estava pronta pra comer a própria merda.