12 de dezembro de 2013

Adão

Eu o vi na sacada, castanho-mistério. Jovem, ar distraído, cem pensamentos por minuto. Quis resgatá-lo de seu próprio futuro. Tentei encarná-lo por alguns momentos, vendo a mim mesmo distraído numa janela escura. E, em dúvida sobre quais seriam os meus novos desejos, tentei nada, mas sê-lo. A janela fechou, me deixando apenas a visão das costelas formadas pela luz através das persianas. Permaneci. Quis compreender sua liberdade e reverenciá-lo pela fantasia que eu vivenciava, como se daquela varanda ele soubesse que a presença de alguém tinha sido necessária para encenar a noite, simbolizá-la, significá-la. E mesmo após ter ido me deitar, busquei aquela memória através do vidro e qualquer sentido nas coisas que me vieram à cabeça só bem depois: ele ali intenso, feito e exposto, ainda assim completamente irrevelado e distante, podendo ser o que eu quisesse; argila.

11 de outubro de 2013

O Menino

Escuridão
que apagaram as luzes
onde não brilha o Farol
cego e seco sobre o mar

Escuridão
que o Destino cobriu
do caminho fez atalho
do sentimento, mortalha

Quem conduz o menino?
e entrega a pena livre
sem prometer liberdade
segue o menino sem livro

Quem conduz o menino?
dourada estrela
ou grande anel
vê no menino o infinito

Evapora a noite numa canção
fecha-se o segredo com giz
abre o palco em azul
abraços com cicatriz

7 de setembro de 2013

dois planetas

sagrado universo construído
em teu desenho uma órbita de sal
teu senhor, vazio de orgulho
carrega uma máscara de vidro

e sob a dúvida de um eclipse
teu Arquiteto não vê o cão que morde o vigia
nem a mão que segura a guia
o que é verdade? o que é fetiche?

mas toda penumbra revela uma Vênus
todo ocaso, uma esperança
uma única estrela: uma única dança

mas se fazes deste círculo um espelho
e no céu encarna um Marte vermelho
ensinas a dois planetas, silêncio e segredo
despertas o ego, mata o desejo

2 de setembro de 2013

(sem título)

Adiante um caminho torto,
que de forma torta leva ao centro;
círculo perfeito, circumponto.

este imenso e engraçado desenho é dica para certos destinos,
cuja saída alcança-se pela paz de espírito
e por um coração-montanha que repouse em vivo silêncio (sobre todas as grandes salas da alma.)
e se não permites ter os olhos lavados, 
se dos estribos faz um cilício, perca-se;

ainda que o tempo deixe fosca a janela,
amareladas a culpa e a regra, desprenda-se.

23 de julho de 2013

Rosário

Rosário,

Foram suas mãos e seus cuidados que fizeram do jardim o pequeno palco de vida e expectativa onde pequenos pássaros e insetos fazem corte à natureza. Sua presença está em cada broto, flor e alegria desta visão que me acompanha todos os dias. É possível que eu encare o jardim como um lar, enfim. Lar: um conceito delicado e transparente. Lembro perfeitamente das nossas discussões homéricas de apenas dois minutos sobre como as coisas são difíceis de serem ditas com as palavras que acabamos usando, nós nunca chegamos à conclusão se os alemães levavam a melhor nisso por terem a definição perfeitamente construída para cada bizarra sensação que alguém é capaz de sentir - nós nunca soubemos nem mesmo isso, afinal. Mil dias, Rosário. Foi o que durou. Se há alguém ou algo capaz de controlar o destino das coisas como se fossem fios a correr emaranhados, é certo dizer então que a razão suaviza muito das nossas perdas acidentais e - para nós - inexplicáveis. Mas nosso caso não foi um acidente, não foi?

Acho errado algumas pessoas afirmarem que o que foi nosso permaneceu inacabado: eu não sei bem posicionar o início de tudo, venho esquecendo - inclusive - todo aquele meu longo discurso decoradinho, a história, o romance; os fatos ficaram maiores do que a própria história. Meu ponto é: tenho me perguntado o que fazer com isso: o jardim e você. Todos me dizem que é a minha velha preocupação com a forma das coisas, a matemática caótica que eu uso para compreender o mundo. Estão todos errados, você sabe. (ou saberia); não há lógica nesta vidraça imensa que está diante das minhas memórias. Não é como deixar um peixe morrer no aquário e simplesmente ir até a loja e substituí-lo por outro igual no mesmo aquário: nunca será o mesmo peixe - qualquer um poderia afirmar - mas o crucial, o mais difícil e que demora a escoar pelo ralo é: nunca mais será o mesmo aquário.


Não há qualquer dramatismo lá fora, Rosário. O jardim está vivo, robusto, intenso: repleto. Mas muda a si mesmo a cada dia, e sua sombra, seus arames para fixar orquídeas aqui e ali, escondem-se por trás do tempo das cascas das árvores, das folhas defuntas, das gerações milenares de formigas.


Talvez haja uma polemologia do afeto que demonstre como mesmo aquilo que é único - uma paixão, uma estrela no céu - é inevitavelmente menor, por definição, que a nossa própria existência. É a medida que nos constrói: duros ou flexíveis; rotos ou resistentes. Sugiro aqui, portanto, que o egoísmo e a vaidade são escolhas, e o pecado não está em escolhê-las, mas em permanecer consciente e cego diante das consequências.

Me desculpe, eu não deveria ter ido tão longe. Um dia espero ter a chance de lhe explicar como tudo isso é importante para mim.


D.

22 de janeiro de 2013

procurado

jovem afeto, onde posso encontrá-lo? em que visão - bosque, praia, castelo - encaixa-te com perfeição, para que eu também fique contente de saber da sua existência? pois o que eu tenho agora em mim é essa sensação que tu me escondes um segredo, que perdestes um fato de cristal em algum buraco para que eu  o encontrasse, e assim os teus domínios, teus vales, tua areia e escuros calabouços aumentassem; a cada busca ou cenário, sou obrigado a dar-lhe mais da minha própria ficção, percorrendo trilhas na ponta dos pés sobre as migalhas e contando os dias abrindo e fechando grandes portões com chaves tão pequeninas; jovem afeto, de que forma irás me assombrar agora? qual é a tua nova fantasia? e de que cor estará o céu no dia do nosso reencontro?

não me confunda os sentidos outra vez com teus sopros e silêncios

7 de janeiro de 2013

puro

hoje durmo ao teu lado com os pés sujos de terra, e me descubro inteiramente sujo, com os lábios secos; e assim invado suas cobertas azuis, deito sobre as tuas estrelas, onde repouso minha memória  - corcel branco de fita laranja -  sossegada; mas teu desejo é insípido, tua língua só conhece fresca mentira, e teu tato, tuas mãos, pele e curva mortal; nada compreendes do prazer, nada conheces do afeto entre os espíritos e nunca abandonastes tua satisfação infantil; e não percebe que és aquilo que condena, disfarçado pelo Tempo

enquanto sonho com borboletas no quintal.