7 de outubro de 2014

outro céu

Olavo,

A última palavra: o silêncio. 

E de uma forma desesperada vi as nuvens tornarem-se negras. As memórias, os desejos, tudo veio abaixo. Compreendi que o mundo exigia um sacrifício; e diante do novilho, branco sentimento, fraquejei.

Mas sua mão cobriu a minha sobre a pena. 

A última palavra, Olavo, permaneceu comigo.

15 de agosto de 2014

vigília branca


Meu caro Pégaso,

Sob o céu branco do nosso reino, vejo, etéreo, o teu ninho; de paredes em guarda, ansiosas por qualquer momento ou gotejo de bica. Sentinelas da tua vontade - imperativa mesmo na tua ausência - permanecessem mudas em minha imaginação.


Ah, Pégaso, não fossem os anos, eu ainda seria tola; não percebes que sagrei-me monja em teu monastério? e como copista das tuas palavras ébrias, admirei o horizonte a cada voo, fiz dele um amigo, uma esperança - jamais promessa - mas hoje

hoje esbarrei em uma das tuas penas brancas e ela me escapou suave entre os dedos, deslizou sobre a fruteira vazia e pousou sobre o chão como um inseto emplumado.

Encarei-a, minutos a fio, e não entendi o que se passava.

Lá fora tudo estava pálido; eu corei vermelha, quente. E entre o sentimento de roubo ou acidente, impûs um silêncio: não seria minha, tampouco tua, já que como todas as outras - e a ti mesmo -, também não a abandonaste?


20 de julho de 2014

sábado

todos os dias imagino
se me imaginas cruel
a sorrir liberto, mirando o céu

todos os dias imagino
que segues construindo
uma vitrine de cristal
um lar manso feito de sal

[quando]
todos os dias me imagino
livre, caminhando contigo
voltando ao sonho, ao crime

todos os dias observo
centenas de pássaros em voo
e permaneço no chão
trôpego, atado pela razão

todos os dias este silêncio:
o piano, a boca, o peito

todos os dias
este sábado inacabado



22 de maio de 2014

Rosário II


Rosário, 

difícil dizer o que me corrói;  cerquei-me feito um louco de paredes confortáveis, e neste cubículo onde escondo minhas dúvidas disse hoje ao teto sobre as suas que também eram as minhas; e ainda estando tão lúcido, tão consciente - como se uma estrela brilhasse difusa em minha testa - há este último véu retirado que não me revelou nenhuma resposta sobre os sentimentos preciosos, encontrei no lugar ferramentas dispostas lado a lado: um binóculo e um espelho: Rosário, alguém em mim me diz que as pistas estão no futuro e no passado, e que à frente de mim e antes de mim permanece um eu de sobreaviso;


haverá futuro, Rosário, neste mar de observações feitas, nestas intensas descrições mentais dos afetos alheios, nesta prática diária de contemplação daquilo que chamo de amor? por vezes plástico, por vezes orgânico.


de um jeito ou de outro, não encontrei motivos hoje para o binóculo ou para o espelho.

D.

12 de março de 2014

ciranda

dançam no teto
todos os teus anjos
descem invisíveis
esticam os dedos, frios
ao calor das gargantas

amam, agigantando-se sobre os teus sonhos
e te sopram no rosto a mesma máscara que usam
e que não vês
tu és aquilo que jamais serão

do alto do teu altar perfumado
afiam o silêncio à minha presença
abrindo com ele a tua boca
e pondo aí uma aranha

segues mimético
preso ao realejo do sagrado
um pássaro indecifrável

17 de fevereiro de 2014

porcelana

Eu não havia reparado o olhar ansioso de Silvia quando ela entrou no quarto provocando pânico numa pequena lagartixa. Metade de sua blusa estava úmida - ela havia lavado a louça - e a partir deste fato eu compreendi que seus poucos minutos de trabalho na cozinha criaram expectativas sobre a nossa iminente conversa aquecida pelas sombras quentes do abajur.

- me conte - e ela deitou sobre a cama, tirando o sutiã sob a blusa, como uma adolescente - como ele é?
Não era possível iniciar uma descrição simples, eu sabia perfeitamente disso, e enquanto ganhava tempo ligando o ventilador - o ruído baixo me ajudava a pensar - a imagem de um vaso de porcelana ricamente desenhado me veio à cabeça: belo, íntegro: único. - absurdamente frágil.

- ele não tem personalidade própria - resumi. e internamente eu ainda visualizava Caio como o vaso de porcelana, fazendo sentido unicamente em um mundo de experiências e convívios muito particular, o qual eu não me via compartilhando.


Ainda que eu tenha condensado os detalhes, e começado de maneira determinista, Silvia alongou os dedos dos pés e, olhando fixamente para os lençóis, foi direta, o que significava que tinha entendido o cenário:
- bom, você é melhor do que isso, digo, por que está com ele? Há algo de errado com sua autoestima? - e riu. 
- talvez - eu sorri. Silvia era uma das poucas amigas com quem eu não precisava me armar de argumentos ou atalhos nos diálogos, não havia culpa ou remorso, jogávamos quase sempre com a verdade.  Isso ficou claro quando eu tentei uma desculpa esfarrapada.

- você sabe, eu ainda... não sei se sou capaz de sentir as coisas como antes
- que besteira - ajeitando a franja com um suspiro - não acredito nessa de ficar sofrendo ou remoendo o passado. acabou, não acabou?
-  acabou. - e o teto do quarto parecia aqui um pouco mais distante.
- a vida é uma só, não dá pra perder tempo com isso. mas, você sabe, é no conforto que a gente se sabota, não há nada de errado em conquistar temporadas suaves, aliás é pra isso que estamos aqui, não é mesmo?, só não dá pra dar uma de Buda e ficar embaixo da sombra esquecendo que o negócio é evoluir, seguir em frente. - mais do que nunca, ela me pareceu alguém no final da adolescência e não uma mulher com mais de trinta anos.

Eu fui dormir pensando em "temporadas suaves"; em mim ainda criança fazendo uma daquelas experiências bobas com uma semente de feijão, uma caixa de sapato, algodão e um pouco d'água. Eu fazia furos na caixa que pudessem ser fechados outra vez e, quando notava que a muda estava quase conseguindo sair por um deles atrás de um pouco mais de sol, eu fechava o furo. E assim sucessivamente, até que o broto definhasse.

Silvia dormira rapidamente enquanto eu sentia que iria acordar mais uma vez resmungando que a luz da manhã não era bem aproveitada naquele quarto tão bonito.

23 de janeiro de 2014

Expectativa

Expectativa, nefasta montanha
dura matriarca a se impor no horizonte

Expectativa, vigília infrutífera
hora aberta, hora nenhuma
boca vazia diante da lâmpada que não ilumina

Expectativa, selvagem sentimento
sábia dúvida que a tudo preenche
enfeita as vontades, libera os desejos
e diminui a verdade

Expectativa, insólita covardia
que antes de tudo é também coragem
um estouro faz a corrida

Expectativa, aurora branca
lembrança e esperança
nem começo, nem fim

Expectativa, um espelho sobre si
o avesso do céu