29 de dezembro de 2009

Onde habita a sinceridade

Ana soube, ao abrir a estranha caixa azul que guardava no armário, o que viria pela frente. Seria a soma de todas as sensações que evitava - a felicidade de um modo geral - cercando-a por todos os lados, deixando-a sem chances para fugir, e mesmo assim estava calma.
Junto com a caixa havia um vazio evidente em seu peito, como se a caixa substituísse momentaneamente alguém que estivesse muito longe para suprir a falta. Para ela, dona da caixa e também de sua liberdade, era como uma perda de independência, pelo simples fato de estar atada emocionalmente ao outro. Sentiu-se fraca e insuportavelmente insegura, não era mais capaz de enfrentar o acaso e principalmente, não sabia como lidar com isso.

Hesitou olhar pela janela, estava sensível demais, mas encarou a mesa e os objetos ao redor, achou-os mais bonitos, coloridos, talvez mais brilhantes, quando na verdade nada tinha mudado.

Pela primeira vez, Ana admitia para si, e com muita dificuldade, que estava carente de afeto e atenção, e quase ouvindo o ritmo da sua ansiedade. Percebeu enfim que não havia como sair daquela situação sozinha, não é um trabalho solitário este que o afeto nos dá e que nos incomoda tanto; lutava contra princípios e definições muito rígidas, escolhidos e mantidos conscientemente, mas que agora vinham perdendo o lastro.

Por mais que parecesse óbvio, não conseguia resumir verbalmente seus sentimentos no puro e simples amor, seria exigir demais da sua nova empreitada pela novidade. Preferia não saber, não ter a certeza ainda, mas a única coisa que sabia, e disso não tinha dúvidas, era que, só agora, estava disposta à tentar.

26 de novembro de 2009

Luz de mercúrio

Antes de mais nada, não estava chovendo, e os passos, quase nenhum, soavam ocos nas calçadas, ou simplesmente não soavam. Havia aquela poeira noturna, dava pra ver sob os holofotes de mercúrio, detestava-os.

Olavo estava na rua buscando sábias lembranças. Sempre que estava inesperadamente fora de casa, e naquele momento ainda estava, cercava-se de memórias inusitadas, sem foco, marcadas somente pela presença de alguém que trouxe algum significado novo para todas as suas perspectivas, alguém que tenha lhe surpreendido. Eram muitos, mas poucos se todos fossem considerados.

Ele a encontrou cruzando a rua, cega em pensamentos, cansada àquela hora, de salto e bolsa, um cacho em destaque além dos outros, balançando desengonçadamente no ritmo das pernas dela. Entrou num táxi, sumiu. Não tinha conseguido vê-lo, mesmo se quisesse, pensava afoita em si, em como queria abraçar-se no banho frio, e desejava deitar e dormir, sonhar tranquila com imagens estranhas, fatos que jamais ocorreriam com completos desconhecidos. Amava muito a ficção do seu inconsciente, e desenhar no teto do quarto todos os rostos que gostaria de ver. Ela ria no caminho, presa à bolsa, mas baixinho, concordando com tudo que o motorista lhe dizia, sobre a chuva que viria no final de semana, os tempos de violência - não eram sempre tempos violentos? -, as notícias óbvias, sim, os políticos cada vez piores, sim, os mesmos filmes sobre desencontros. Sim, vivia este desencontro. Toda a mesma expectativa, conseguir com algo, ou com alguém, o ideal. O que realmente desejava para a sua vida.

Por não saber, chorou.

Olavo ainda estava no cruzamento, do outro lado da rua. Ligou três vezes para o mesmo número, que não, não era o dela. Sem resposta.

8 de novembro de 2009

Rosa-dos-ventos

Vou, atirada à dúvida, incerta da nossa indecisão. Certa de que não terei nada à comparar, distraída pelo caminho, sonhando na tua ausência, mas sigo, com o riso calado sem temer a minha vitória junto àqueles que me querem tão bem.

E este desconforto, este remoer vibrante entre nós, é fogo de palha.Mas penso também em seus desejos, e em como me queres bem; penso, enfim, em como te vejo, bonito à mirar o espelho, cantando baixo alguma música, levantando os olhos para a janela, nada, mas o céu, juntando sorrisos, o seu sorriso.

Vou descrente, abrindo as janelas para o calor do tédio, tentando lembrar onde nos perdemos, em que canto, em quais palavras, tão imensas, mas ainda menores que o silêncio, este sim o culpado, não nós, mas nosso silêncio.

Outra vez, quem sabe, será de novo, aquilo que já se foi, e fingiremos uma noite, em meio aos copos, desviando olhares, rindo dos nossos hábitos, e das histórias que tantos contam. Mas hesitarei, cavando atrás de algum arrependimento, entre uma coisa ou outra. Minha escolha, porém, é sempre o inusitado, o estranho conhecido, pois aprendi as suas regras no jogo.

Nestas ilusões, encarnadas no medo e na vontade, neste fingir para criar novas lembranças tão semelhantes, haverá sim uma rosa-dos-ventos, arrastando-nos mais uma vez para o nosso afeto.


Texto em resposta à "Para seja-lá-qual-direção" de Thiago Terenzi

31 de outubro de 2009

Enquanto

Estava atado então por regras ordinárias, frias, trançadas envolta dos laços do afeto, esmagando-o pouco a pouco, e à cada vez que se sentia mais livre, sentia mais medo e assim prendia-se mais ao descaso.

Nunca revelara que amara alguém, pois não sabia de fato se tinha encontrado este sentimento. Vivenciá-lo era profundamente perturbador, estranho demais, não se enxergava livre para sentir isso antes, não se permitiria agora. Antes, pensara, como agora, não queria limitar-se, definir-se. Não aclamaria algo que não estava certo de que poderia amar e cuidar; por duas vezes tentou e falhou. Agora, vivia um intenso desacordo de ideias, apresentado pela mesma condição de declarar-se sim, apaixonado como estava, mas fora das regras demais do seu papel, do que gostaria e desejava para si quando nem ao menos pensava sobre o que era o amor, mas apenas sua representação mais óbvia: uma família silenciosa, que projetava para o mundo não mais do que os momentos simples, calando-se diante dos próprios temores, que nada tinham a ver com esses preconceitos sociais existentes, pouco importava a opinião alheia ou a dos entes internos, mas desconhecer as vontades e os anseios dos iguais ali dentro das seguras paredes familiares, era o maior medo que poderiam enfrentar.

Não chorava, pois seria demonstração de fraqueza, ou não chorava pois não conseguia saber se havia motivo para tanto, se era justo. Com ele, com certeza não era.

Fugia por sentir-se amado, e temia ferir o outro. Temia cair na tentação de ser como todos são quando finalmente compartilham com alguém algo que mostra as faces absolutas da alegria e da tristeza.

E por temer ou não entender, não viveria. Nem ele, nem o outro. Não estavam, como diriam por aí, distraídos em confidências conjuntas, esquecendo de todas as outras coisas. Portanto, não tinham o que desesperadamente necessitavam; um não conseguia livrar-se de si e o outro não conseguia parar de tentar entender isso. Ambos preocupados demais em tentar descobrir o que eram, e além, o que seriam.

Não se tratava de coragem, nem da vontade humana. Muito menos de um milagre. Esperava-se algo, ou alguém. Um estalo, ou nada.

12 de outubro de 2009

Outubro

Dias nem tão claros e nem tão escuros percorriam sua mente, não estava, no entanto, perdido ou desconcentrado; Olavo, um silêncio. Sorria sim, todos percebiam, mas apenas à tarde, quando já não estava tão quente, e as cores são tão mais admiráveis, e os sons tornam-se zumbidos confusos, muitos pássaros, gente falando alto, pedras debaixo da roda, e Olavo à deslizar entre os atos, ora amante, ora amado, não mais hesitante.

E quando pôde, atirou-se fatigado ao sofá, com o céu cobrindo-se de cinza ao pensar inquieto, e rompendo em branco quando distraído. Ali, dormiu um sono merecido que demorou até o início da noite.

Olavo percebera àquela hora que tinha cansado de sentir-se cansado, evitando com cautela também o humor revolucionário, não estava em busca de expansão, explosividades, talvez sinceridade; naturalmente.

Era Outubro, a loucura da umidade formava bolhas secas no pé após o banho, as folhinhas - verdes em extremo - temiam o lento jabuti. Os outros, todos eles, estavam com muita pressa. Olavo também.

2 de outubro de 2009

ao espelho

E se não tenho a carne
que me alimenta
que me sacia
e sangra na minha boca

Ardente em desejo
me contento com a força
obscura e egocêntrica
que o espelho me oferece

E meus desejos invadem
a fria face
mas voltam feito faca lançada
cortando a realidade.

adaptado de rascunho escrito no dia 4 de Junho de 2009, originalmente intitulado "Carne"

29 de setembro de 2009

Telefonema de domingo

Hesitava em levantar da cama porque era Domingo. Um daqueles típicos, com Sol, o ar leve e gente na rua carregando caras de sono e sorrisos frescos. Mas ela delicadamente se enroscou ainda mais entre os lençóis, deixando apenas a cabeleira ruiva para fora.

Lílian temia o dia como um todo, não se satisfazia aos Domingos: acordava tarde, nem sempre tomava café da manhã, e corria para ler o horóscopo na revista; só, e em devaneios pela casa, vestida apenas com uma blusa azul e calcinha branca, ela olhava o telefone da cozinha, depois o teto da sala e finalmente arrastava-se em direção a mesa de trabalho no quarto. O tédio que a consumia não era por falta de prazer com as coisas óbvias, livros e amigos, tudo isso orbitava muito próximo das suas mãos, mas longe demais do seu desejo. E tentava se distrair da pior maneira possível, abrindo todas as janelas e ouvindo música em tom levemente alto.

Trágico seria pensar nele, pensava. E já tinha, obviamente, cometido sua falta. Mesmo com a cabeça nas nuvens, lá estava, saído do nada, em meio às frases mentais sobre o que comer, que parede pintar, para quem ligar, e ele surgia, fruto do seu humor agradável, da sua saudade. Considerou então, sem medo, apenas dando um gritinho abafado e apertando os olhos, que estava apaixonada.

O telefone tocou, mas sem assustar-se, ela abriu devagar um olho, depois o outro, deslizou até lá e atendeu: era ele.

2 de setembro de 2009

Diálogo do afeto

Um homem, nem tão velho, refletia sobre as próprias conquistas e temores àquela etapa da vida. Curioso, questionou um jovem:

- Ei, meu caro!
- Pois não?
- Estou aqui meio avoado, em dúvida sobre algumas viagens que tenho que fazer, como se fosse mudar o meu destino, daí ocorreu-me perguntar a você: que temes?

O jovem, que deveria ter não mais que vinte anos, não demorou a encontrar a resposta dentro de si, pois logo sorriu. Mas hesitou, embaraçado, contar ao homem. Tomando coragem na própria simplicidade do pensamento falou:

- Temo não viver um grande amor.

O homem riu. Questionou-o sobre as coisas da vida, as aventuras, as descobertas da maturidade, os estudos, não temia não vivenciar as conquistas que essas coisas proporcionavam?

- Sei que ainda sou um pouco novo para viver um grande amor - refletiu o jovem - Mas tudo isso que você me disse pode ser encontrado à qualquer momento, não nos pega de surpresa. E quando se encontra alguém que nos ama verdadeiramente, nada impede a realização dessas tais conquistas juntos.

Parou por um momento, percebendo que ele mesmo estava dizendo algo muito sério que não havia verbalizado antes.

- E mais - continuou - me preocupo, na verdade, se estarei é moralmente livre para amar, pois sei muito bem que o maior impedimento neste caso, ou seja, vivenciar pela primeira vez um puro afeto, é a nossa consciência estúpida e medrosa. Afinal, você nunca se apaixonou? É o que dizem quando acontece: o desespero é tanto que colocamos um monte de falsos empecilhos na frente para justificar o nosso medo.

E seguiu seu caminho, deixando o homem perplexo, e também livre da presença estranha para poder chorar.

30 de agosto de 2009

Novo Desejo

Imperativo, pediu um novo desejo inventado. Todos os que tivera até agora não conseguem descrever o que almeja sentir, o próprio sentido do querer. E o novo, assim pensava, completa um vazio inexistente, em que se acredita só para se seguir adiante.

Porém, temia a larva do medo dentro da maçã não colhida: crescendo faminta pela carne do fruto que ele demorou a encontrar. Se estiver condenado, ele o engolirá em meio a ânsia e a vontade; o bem e o mal juntos.

E fez da sua imagem um escorpião em meio a um círculo de fogo, dando preferência à morte pelo próprio veneno que se deixar queimar, e arder em dor, no desespero pela liberdade.




(adaptado de rascunho feito no dia 28 de Fevereiro de 2009)



22 de agosto de 2009

Herói

Estranha nebulosidade que percorre teus sonhos e beira fria o batente da janela, tirando o brilho das folhas, entristecendo os carmins; eu vejo a realidade e tua imaginação correndo entrelaçadas, nuas. Mas algo mudou, como se a tarde, elétrica e silenciosa, tivesse aquecido os corações, incluindo o teu.

Sigo em frente, observo-te a temer os outros, e estremecer na minha ausência, calado e sentimental. Eu te amo.

E este herói que me invade, marítimo, rebatendo em meu orgulho montado, divide outros segredos, outros momentos, fazendo do cinza uma cor púrpura invejável, carregada de sentimentos; admiradores delirantes do afeto acolhem-se uns aos outros em alegria, sim, eu vejo. Eu vejo!

E te encontro com os olhos vazios, buscando o chão, almejando terra firme, pois sinto outra vez esta ausência luminosa, tu, cercado das próprias lembranças conjuntas.

Estou aqui. Eu estou.

6 de agosto de 2009

Frágil

Às vezes a borda de uma xícara de café assemelha-se aos lábios quentes de um outro. E este desejo, fruto de um desespero silencioso, era ainda mais denso agora, enquanto ele não só admirava a xícara, como a luz refletida na superfície negra; poço negro, a imagem da sua própria consciência naquele instante. Sorveu o desejo ao mesmo tempo que o pensamento, ambos deliciosamente amargos, porque não havia dor, sofrimento como dizem, mas um certo prazer envolvente, trazido pela indiferença do ego. Estava lá, ele, a xícara, e uma expressão de pouco caso ainda quente na garganta.

'Fo-da-se' murmurou baixo cada sílaba, para então sorrir, quase deixando derramar café sobre os inúmeros papéis, nenhum importante, é verdade, mas vitais para a organização de um homem desorganizado.

Lambuzou-se sem querer, e cometeu o reflexo de limpar a boca com a própria língua, fechando os olhos, induzido pela própria vontade à armadilha das lembranças; cilada da paixão. Engoliu o resto de café antes de ser levado à cavalo pelas palavras, e sacudiu-se para ir até a cozinha - lugar este onde todos nós deslizamos internamente para a moenda de nossos monólogos, a cozinha é definitivamente o melhor lugar para a punheta mental - deixando assim a xícara sobre o balcão, rindo ainda por imaginá-la como uma arma que acabara de usar para matar o tédio, tendo o tiro atingido qualquer lugar perto do orgulho que carregava nos minutos anteriores de engatilhá-la.

Ainda entre a sala e o escritório, esqueceu o que pensava, e seguiu, apenas ligeiramente desanimado, mas para o quarto.
Foi entre um sonho e outro, enquanto ouvia um sibilo que dizia-lhe que amar demais causa fissuras ao coração, que a xícara, última de um par colorido que comprara há tempos, trincou vazia, e solitária, na madrugada.

17 de julho de 2009

eu ia

Eu ia comprar flores. Eu ia à feira escolher o peixe, dançar entre as barracas, encantada pelas listras laranjas e brancas, eu ia dedilhar as caixas de morango, e pediria ao seu Pedro: bom dia, seu Pedro! Hoje vai chover? - e ele me diria que não, para sustentar o meu sorriso. Eu ia, mulher desembestada, entre tantas outras, fedendo a gente, empoada com uma sacola biodegradável, estampada de verde e amarelo, eu a lotaria com meu prazer de escolha, entre os múltiplos frutos, legumes frescos; eu também dentaria um pastel. E vestida com aquela saia velha da minha mãe, eu estaria satisfeita, encontraria em mim outra vez a menina que fui, circulando de mão agarrada à uma saia igual àquela, vendo outras meninas, medrosas e chiliquentas; vendo agora outras mulheres, temerosas de amor, desiludidas, enfraquecidas já ao Sol da manhã, mas não eu, forte e corada, desejando apenas viver os momentos, saíria por cima das tensas mentes na feira.

Eu ia unir assim nós dois à mesa, em uma quinta comum, desimportante, mas que eu marcaria com o almoço, feito para acordar-te, nu e silencioso nos meus lençóis, um milagre sob meu teto; eu chamaria teu nome ao pé do ouvido, indiscreta e docemente. Tu então me erguerias sobre a vontade, sorriríamos.

E a mágica do som dos talheres justificaria meu afeto, com o sabor da noite anterior ainda presente em nossas mentes; nosso silêncio acabaria em despedida, eu sincera, tu feliz.

Eu ia agarrar-me aos travesseiros, girar por cima deles, envolvida em memórias de algodão, vermelho-opaco; a princípio muda ao ver-te recostado na porta, eu ia dizer: eu te amo; um calafrio me subiria a espinha, e tu dirias: eu te amo. Como nas outras vezes, fazendo um melhor compasso do meu dia, nós seríamos nós, e mais.

Desejando assim, eu fui.

8 de julho de 2009

Noturno

O inverno dourado contaminou-o de prazer. Foi o que constatou Pablo, ao percorrer as ruas em busca de novas formas de entretenimento e consumo; não era um amante da futilidade, mas recorria à ela vez ou outra quando o orgulho permitia. Afinal, este fruto da vida material é colhido por todos aqueles que vivem além da própria subsistência. Pablo ía além do rótulo, sua futilidade estava muito mais atribuída a um amor-próprio, a um carinho ao ego, do que a um comportamento da personalidade, já que esta, múltipla e colorida com intimidades diversas, permanecia ainda brilhante, fresca, só podendo ser vislumbrada nos olhos dele, e mesmo assim, se permitisse tal invasão ao sustentar o olhar alheio.

Sentia-se verdadeiramente apaixonado, envolto em mistérios da mente, sem qualquer ser em especial, amava o fato de amar, e entregaria este afeto em profusão quando fosse requisitado; o desperdício não estava em seus planos, e mantendo-se inalcançável saberia, pela surpresa do envolvimento, à quem deveria afortunar. Quanto aos outros, homens e mulheres desconhecedores da paixão como uma loucura, caíriam mortos e tementes ao sentimento.

Uma vez em casa, Pablo permitiu-se observar o divino como algo próximo, como sua essência verdadeira; estirou-se à noite no jardim, frio e silencioso, para encontrar todas as estrelas no mesmo lugar, como um milhão de fragmentos preciosos jogados em um manto negro de forma natural, criando um conjunto único, súdito de uma imensa pérola, que era a rainha da noite.
Desviou os olhos da realidade, permanecendo em sua solidão imortal, onde começou sem querer à sonhar, e tendo os lábios como única região do corpo ainda não entristecida pelo frio do jardim, dali partiu um suspiro quente, enrolado num desejo; rindo de olhos fechados, delirava e não percebia, a noite tentava em vão acordá-lo, mas como uma mãe observa o filho em conforto, a brisa cessara, e nada poderia afetar agora o sono do espectador ingrato do encanto noturno.

Seu sonho resumia-se ao calor de uma mão segurando a sua por um caminho tortuoso, fechado em meio a arbustos baixos, floridos ou não, e ria por não entender para onde estava sendo levado, mas confiava no guia desconhecido. Até que um galho feriu-lhe o rosto, hesitou, e violentamente puxado, continuou o caminho, mas logo as folhas verdes tornaram-se escassas, dando lugar a um roseiral desfolhado e ressequido pelo inverno, cujos espinhos arranhavam-lhe o rosto, os braços, e rasgavam-lhe as roupas. Mas não podia soltar a mão, se a soltasse, ficaria perdido. Deu-se conta de que seu dedos relaxavam, contra a própria a vontade, e o guia, quem quer fosse, não tendia a resgatar a força do enlace. Acabou sozinho, parado, e em meio ao desespero acordou.

A Lua havia sumido, e um vento cortou rapidamente a copa das árvores, anunciando assim um palco vazio, onde o amante solitário, Pablo, como o chamavam, livre de um pesadelo, desapareceu do jardim pela porta da frente, seguro do chão onde pisava, e mais ainda, de que o afeto guardado permanecera intacto; dormira em sua cama. Sem medo, e sem sonhos.

21 de junho de 2009

Inverno

Não mais sentia o desespero de antes. Nem amava como antes, porque agora o que colocava à prova não era o seu amor, mas o seu cuidado, o seu carinho. E quanto a isso não tinha dúvidas de que estava no caminho certo. Mas entristecia pela manhã, ao final da tarde, e percorria as horas do dia com uma vontade louca de encontrá-lo, e de viver com ele e de acordar ao seu lado; agora, amanhã e depois. Mas estas promessas, ditas no seio do desespero, quando alguém hesita sobre a perda de outrem, são mais leves depois de algum tempo, e perdem seu significado com o passar dos dias, por isso devem ser ditas sempre que a vontade se fizer presente.

Sentiu frio, e com o frio veio uma estranha solidão, como se não encontrasse a si nas coisas, nos objetos pessoais, nem reconheceu a própria letra, era outra e ainda assim era ela. Tinha que terminar com aquilo, com aquela indecisão entre amar ou não, entre amar na distância, na certeza da desistência, ou seja, na fuga, ou simplesmente viver o amor plenamente, mas ele não conseguiria. E à cada passo dado, lentamente, rumo ao conjunto, ao afeto, sentia-se mais distante, mais racional, mais amada, porém menos amante. Se tivesse caído, perdida de paixão, por outro, teria escolhas, teria arrependimentos e uma decisão clara à sua frente, mas nada disso, tudo o que tinha era um amor exaustivo, uma paixão consumidora de sono, feliz e infeliz, dúbia e secreta; e por ele faria qualquer coisa, mesmo que não demandada, correria e apareceria na porta, cheia de sorrisos, repleta de novos carinhos, e novas frases ao pé do ouvido.

Mas a esperança humana é como o inseto verde que carrega o mesmo nome: frágil e débil. E a sua não escapava do padrão. Os dias tornaram-se viáveis, a dor tornava-se cada vez mais suportável e a ausência, o avanço a passos lentos, tudo isso acomodou-se num canto imaginário, em que era possível admirar e cuidar, mas com desleixo, até que sumisse ou fosse consumido pelo resto das coisas importantes da vida; as coisas que julgamos importantes: a opinião alheia, a família, a nossa moral e nossos encontros de sábado.

Viu claramente que prioridade ela não era, tampouco seria pelos próximos tempos, se aguentasse e esperasse, se sobrevivesse.
Juntou suas coisas numa mala pequena, rodou pela casa uma última vez, não deixaria bilhetes ou explicações, tudo já tinha sido deixado claro até demais. Sorriu um daqueles sorrisos sofridos, que desejam apenas uma incerteza, um pedido para que fique, mas nada disso veio e as horas passaram; ela se foi. A casa ficou vazia, lotada de lembranças, e nada mais.

Ele nada fez ou disse ao chegar, porque percebeu que com o frio do inverno, veio também o tempo de questionar as coisas mais duras da vida. As coisas sobre as quais o amor sempre fenece e decide não viver.

10 de junho de 2009

Fim de Festa

Acontecia de acordar desencantada, sinal claro de que estava suportando algo além do possível. Um ensaio fraco de sorriso na frente do espelho e só, não era preciso muito mais para lembrar das frases marcadas, mastigadas, que serviam para enaltecer o ego e colocá-la em foco com a vontade.

Nada disso realmente adiantou, estava insegura demais, dura com as palavras, jogando com os fatos, na brincadeira maldita de destruição do amor próprio. Sentia-se estúpida e suja. E não admitiria, mas estava era com um ódio dele, do infeliz, e da puta que supunha estar em cima dos dedos dele naquela noite. Uma desiludida, boçal, cheia dos gostos marcados, citaria autores óbvios e filmes românticos na conversa, e ainda assim sentiria-se esperta, como se o peso dos livros, do bacharelado, tudo isso embonecado numa estante, fosse suficientemente glorioso na vida. Preferiria ter inveja de um ser como esse do que ter a plena noção da inferioridade evidente. Não que fosse incapaz, mas a outra nada mais tinha do que uma casca social, um monte de opiniões que não eram dela, e podia vê-la claramente contestando e legitimando tudo pela noite, dizendo a si mesma: não posso deixar de gostar disso porque tais pessoas gostam. Uma idólatra, burra, presa eternamente nos seus dezessete anos.

Queixou-se de dor de cabeça ao telefone, duas vezes, nem ao menos conseguia linearidade nas ideias, queria vingar-se, mas esse sentimento impuro só traria problemas, esfaquearia o abstrato e atingiria a si. Não iria a lugar nenhum, tampouco o procuraria, sabendo do divertimento singelo que ele arrumara, que o mesmo lambesse os beiços. Se não tinha consciência dos atos, teria depois, sem que ela precisasse suspirar ou mesmo aparecer. Ficaria prostrada em casa, insana, encaminhando as coisas suas, mordida até o talo de ciúmes.

Vazia, era como desejava estar. Queria jogar fora as imagens, a saudade, até mesmo o medo e a raiva. Não clamaria pelos outros, pelos próximos, nem por ele. Deixou a coisa ferver, até que exausta, silenciou as vontades e acalmou-se. Se alguém perdesse, mais e mais, não seria ela. Porque a noção de derrota se dá, quando acredita-se na própria impotência; ele sim, covarde, negaria a conquista mais difícil por preenchimentos momentâneos, mulheres destoadas, simuladoras do gozo.

Como num fim de festa, ela recolheu copos nem tão cheios pela casa, todos de água, com a marca de seus lábios. Sem se dar conta, tinha espalhado vários ao longo do dia. Quebrou um, e ouvido o baque, ela mesma pois-se a chorar em direito, armando-se de uma clara defesa que não controlava. Queria vê-lo, mais ainda, sentí-lo, porque ela mesma sabia estar - ao imaginar tantas situações ruins - cada vez mais distante; sitiada em um intervalo perigoso.

4 de junho de 2009

Impulso

as lágrimas que esquentam
teus olhos e tua boca

são de sal e dor;

o Tempo lhe trouxe a verdade
te marcou a carne e a pele,
mas refugiou-se atrás de suas memórias
e nelas não tens certeza da verdade

ou do sonho.

e este fardo que carregas
mágoa de cristal
flores com espinho
requer teu cuidado e atenção.

da angústia farás fogo
do fogo, amor;

amor para que vivas.

escrito em 18 de Novembro de 2008

24 de maio de 2009

Inquietos

Deixou-se acordar aos poucos; vivera uma realidade recente, daquelas que são como sonhos intrigantes e bons, mas amedontradores ao final.  (o pé esbarrou num copo d'água, ninguém se importaria)
Havia um peso em seus olhos, mas não provocado por sono. Um gosto de cobre à boca entreaberta, preparada para um suspiro, que veio sôfrego fazendo-o sentar-se novamente. 
Era uma manhã peçonhenta, um dia facilmente rotulável de lindo, mas que escondia nos solitários uma estranha ausência, por vezes vinda da noite anterior, e sempre atribuída aos afetos. Quer fosse a mãe, para os pequenos, ou o amante para os jovens inquietos em seus quartos descombinados. Para ele não era uma coisa nem outra, sentia uma falta, egoísta, de si, antes de culpar as figuras alheias.

Neste momento, outro também levanta-se de olhos bem abertos, e ao sair da posição emborcada, sentiu as palavras não ditas moverem-se dentro da garganta, como uma rolha que boia dentro da garrafa de vinho. É um gargalo estreito o dos sentimentos. Teme-se muito mais do que se ama; poucos conseguem manejar esta válvula que é o coração junto com o cérebro e a língua. Um sibilo, uma lágrima, um olhar, podem ser interpretados e lançados de diferentes maneiras.
Relembrou e defendeu sua atitude inexpressiva quando viu-se no espelho e secou o rosto com uma toalha já úmida. Precisou ficar sozinho, avaliaria o passo dado sem fomentar segurança, pois não se sentia seguro. Ainda que isso gerasse um desconforto doloroso ao outro, e sabia muito bem que isso aconteceria, não poderia ter feito outra coisa.

O primeiro não respirava. Engolia faminto o ar pela boca em busca de lucidez, ou minutos de traquilidade, mas ainda passaria por um estado de tempestade, sozinho, após um tempo debaixo do Sol morno. Pensaria melhor quando a tarde chegasse ao fim.

Ambos carregavam um brilho nos olhos, de choro ou dúvida, e desafogaram-se na distração vaga do lazer, retirando assim o foco do desassossego. Foi quando aprenderam a ter calma e, talvez, mais cuidado com as doses de incerteza e silêncio.

8 de maio de 2009

Areia

Deitou-se na areia quente, esgotado pelo tédio, animalizado, viu-se tal qual um leão, uma fera impaciente, um jovem à espreita dos próprios pensamentos. Assim, jogado entre toda a natureza que explode perto do fim do dia, o Sol lhe sorria. Sua retribuição era um orgulho fechado, oco, facilmente despedaçável se soubessem como atirá-lo contra as convicções humanas, aos erros que todos cometem, e principalmente ao julgamento dos olhos, tão insensato e impuro.

Torcia e lutava por um amor claro e franco entre as partes. Vivia diariamente uma constante tentativa de controle do ego, resguardou-se com vários espelhos mentais, buscando em todos algo que lhe fosse semelhante e ruim, sentiria-se desta maneira dentro do conjunto vivo e óbvio da juventude que trazia no rosto, mas não nos sentimentos. Calou internamente sua voz por alguns momentos, observava o silêncio do vento entre as coisas, e por fim, julgou-se, uma, duas, diversas vezes até que sentisse cada frase como uma trombeta numa orquestra de palavras e ideias todas insultando umas às outras, tentando fazê-lo agir, correr, se possível, não o ato literal, mas fugir de si antes de engolir-se e sufocar. 
Tudo era no final uma bobagem, um escândalo abstrato desnecessário; armando-se contra si como podia, levantou-se e olhou o horizonte. Amava, ótimo. Odiava-se no papel imbecil e vazio de importar-se com a opinião dos outros, mas esta era uma outra situação que também lhe incomodava no momento, uma pública e clara; e mentirosa, mentia cegamente aos outros porque todos o fazem. 

Um riso fez com que o Sol ficasse tímido e brilhasse menos, o azul tornou-se um pouco aguado, e olhando para trás em busca do outro presente, perdeu em boa hora o novelo disforme que juntava no consciente.

- Que fazes aí parado olhando para o nada?
- Não é o nada, veja.

O outro então percebeu que o horizonte ganhava um destaque especial. O Sol fazia seu último agradecimento efeverscendo o mar em laranja. E o céu coloriu-se de um azul denso, daquele impossível de se achar em caixas de lápis de cor.

- Sensacional. Mas no que estavas pensando vendo tudo isso?
- Ora, no que o horizonte tem para mostrar de mais belo e assustador: o futuro de um passado muito próximo.

21 de abril de 2009

Contrapesos e Marionetes

A manhã deu de presente à ela um Sol fresco e muito branco, todas as cores recebiam assim um tom mais aveludado, e as emoções humanas tornaram-se mais delicadas. Julgava os dias de outono mais felizes, porque comparados à uma peça simples e infantil, incendiavam rapidamente no ápice e terminavam num desmaio solar confortável, mas que para ela, trazia uma insegurança inquieta, um não-querer que temia o futuro muito próximo.

Caminhou por entre os objetos demasiadamente conhecidos, as falas da casa endireitada e mal empoada por entre algo que não era poeira, mas um pandemônio de tons de marrom e amarelo, como um depósito de vidas diferentes e há muito disassociadas. Sentiu-se só, ouvia os pássaros lá fora mesmo com a lembrança da noite já deposta, cozinhando um mau humor latente, provindo de um súbito abandono, um desarranjo entre os afetos.

Largou-se por cima de uma pequena mesa, derrubando um chaveiro e algumas moedas, ali tentou lembrar do que aprendera consigo mesma sobre agir espontaneamente, e não deixar-se levar pelo agrado ao outro, por uma ética que se ensina às crianças já crescidinhas; memórias suas que marcavam os atos falhos dos dias de hoje. De nada adiantou remoer as ferramentas à procura de uma segurança momentânea que lhe trouxesse fôlego só por mais uns dias, vincou-se em seu rosto a dúvida. O que fazia de errado? Como melhorar? O que deveria dizer, e como? O que a irritava? Porque agia daquela maneira e não desta? Amargou o tempo perdido... fraca e com a mente embotada de anseios não respondidos, que acabaram por liberar um veneno à própria estima.

Rodou pelo quarto duas, três vezes, abriu armários procurando a si, tentando enxergar alguma coisa ou objeto que servisse para salvar a consciência de um novo afogamento. Tal qual marionetes, movia-se controlada por lampejos de pensamentos seus, mas que não tinham qualquer marca da sua autoria. O pior era vivenciar claramente, e também sentir, o gorgolejo mental, trazendo calma e desespero em intervalos tão curtos e tão custosos.

O erro estava em dar o mesmo peso a tudo e a todos. Não colocava-se na balança, apenas avaliava. E atender ao que julgava ser mais valioso no momento tornou-se caro demais diante dos cada vez mais minguados desejos, não atendidos e tampouco trocados por equivalentes.

Horas mais tarde, sóbria, porém ainda sentindo-se desabrigada na própria pele, teve que se conter e deixar o enjoo instalado parecer natural e cômodo. Só encontrou o silêncio quando fechou as cortinas da janela e olhou a realidade lá fora como quem observa uma espectadora satisfeita na platéia. Bocejou aliviada, sabendo que naquela noite dormiria por pura e simples vontade. 

26 de março de 2009

Véu

Encadeou dentro de si três sentimentos: angústia, amor e ódio.

- Você teme à mim?
"Temo o fardo que você me apresenta" - pensou em como traduzir tal sinceridade bruta.
- Temo, por vezes, o seu afeto.
- Acha que cometeria loucuras?
- Não, eu compreendo. Sei a fúria que é gerada por um desejo, mas não sei como lidar com isso, quero dizer, desejo o seu desejo mais que tudo no momento, mas há em mim algo que me freia e me coloca em segurança; é como um beijo dado por detrás de um véu.

Não chegariam a lugar algum porque o medo os contaminava e fazia com que todas as vontades permanecessem aprisionadas junto com as palavras honestas que deveriam ser ditas.

- Você foge de mim. E de si.
- Como?
- Em sua rotina, em suas delicadezas, seu amor-próprio e também ao calar-se mentalmente, sinto que você procura outras memórias mais leves para não ter que vivenciar o presente que te imponho. Você afasta a minha imagem da guia que segue. Eu, por outro lado, me desoriento naturalmente e busco a você como norte porque aí encontro a segurança necessária em meus dias.
- Não, eu não fujo. Se fugisse seria mais fácil até para mim.
- Tenho minhas dúvidas. Mas é verdade que seus olhos não ficam distantes quando falam comigo.

O silêncio gritou. Todas as palavras ditas neste momento poderiam ser caras demais para ambos. Veio à mente do amante a frase incerta, cujo fim desencadeou uma intensa sensação de distância do ser amado, e que, se fosse materializada, apareceria na forma de uma fraca fumaça azul e brilhante, para então diluir-se na realidade do ar e dos outros pensamentos. Tomou-a de olhos fechados: "e por dentro dos corações aflitos pulsava uma bomba de flores agora murchas."

- Qual a nossa saída?

Perguntou porque sofria do vazio racional.

- Nossa saída é a mais antiga das sortes humanas. Como nas fábulas, o destino imporá o excesso a um e nada ao outro, um dos lados não suportará tal extremo e ficará livre. Enquanto o outro amargará a lição que nós, e digo isso em relação a todos os seres, temos que aprender cedo ou tarde.

Não precisou perguntar qual era a lição, já estava escrita e evidente: só se pode amar o outro, amando a si próprio.

- Mas quero ainda dizer-lhe uma última coisa, um julgamento é apenas uma precaução d'alma inquieta. Retire este véu.

E foi-se, sabendo que não estava em paz, mas ainda assim estava feliz.

14 de março de 2009

não tão distante da meia noite

(Ainda com o rosto seco, procurou pelas lágrimas que nutririam sua paz)

Pensou se era possível sentir saudade do que não se teve ou não se conheceu, mas este não era o caso, teve o vislumbre dias antes, quando olhou para o céu do amanhecer. Ali, sentiu que em algum lugar seu sentimento, e seus receios, tinham o par.

Não solitariamente, contestou o equívoco. Por hábito, viu-se lá pela meia noite, e a hora foi clara em seu clichê de questionamentos. Quando chegasse ao próprio leito, seria tarde demais, disso sabia, porém ainda seria cedo para o início de uma longa digestão mental.
Aquela coisa entre tristeza e alívio era como uma víbora que se alimenta de pensamentos e passa um longo período sem fazer outra refeição. Mas não sabia nomeá-la, só a ouvia internamente sibilando, sibilando, sibilando.

Às vezes acostuma-se ao sabor curioso da impotência diante dos atos. É como lamber uma colher vazia esforçando-se para lembrar de um gosto doce.

(As lágrimas não vieram porque seriam muito semelhantes às anteriores e, com essas, qualquer paz tornaria-se um mero bocejo infantil antes de um sonho inquieto sobre água)

Estava então lá pela meia noite, boiando na calmaria inicial da frustração. Sendo assim, a chuva achou melhor chegar em silêncio.

23 de fevereiro de 2009

Não pergunto quantos são

não pergunto quantos são nem quantos foram antes de nós;

nós, que somos nós?

aprendizados paralelos;
cartas marcadas, vitórias e silêncio.

não pergunto quantos são os que vêm pela rua, diante de mim, loucos de relógio e tempo nenhum. Eu os afasto com a sua lembrança, quando o olho sinal e a faixa branca;

quando vejo a morte no parachoque, no vidro quebrado, na minha juventude aberta e ferida no meio da rua. É o que todo mundo vê quando atravessa a avenida 34: a morte com seus faróis à espera no leito listrado de branco.

mas, paixão, pois é assim que te chamo, o que ninguém vê é a própria consciência tentando chamar a atenção, alucinada, pedindo mais, correndo contra os atos de impulso, domando as emoções; castigada pela realidade com seus cheiros, seus fatos, suas cores que ousam infiltrar a clareza das nossas vidas.

E com essa realidade, te lembrei alguém que jamais fui. Pois tudo não passa de uma expectativa, quando conheces o outro e percebe que antes daquele momento existiram todos os anteriores, e acreditamos que estes são fáceis de adivinhar através de cicatrizes, de um brilho fraco nos olhos, de um riso sincero antes do amanhecer.

É por isso que não falo e penso demais. Nem pergunto quantos são... os seus momentos antes do nosso.

1 de fevereiro de 2009

Augusto

Não era o vazio da fruteira, um claro sinal que sua manhãs andavam menos coerentes, ou o cochicho dos quadros espalhados pela casa que perturbavam o raciocínio de Augusto. Era ele próprio em suas armadilhas emocionais. Envolvia-se num suspense, temia elucidar as coisas e estragar a surpresa dos momentos e por isso não mais vivia.Trancado, ausente, não de maneira física, da vida cotidiana enquanto a casa mofava pelos cantos e dentro dos armários. Ele era o próprio reflexo no espelho o tempo todo; buscava a si nos olhos alheios, porque a natureza do outro exigia preconceitos e longas frases mentais.

Noite e dia logo misturaram-se. Dormir tornou-se impossível, drogar-se para isso o condenaria à incertezas no dia seguinte e, talvez, à dor. Não fazia exigências, não desejava fatos ou esses sonhos egoístas e completamente inalcançáveis. Tinha objetivos claros e curtos, e o caminho para se chegar até eles estava todo marcado, exposto como uma ferrovia em meio ao nada.

Augusto não compreendia que seus esforços eram inúteis. E mesmo que chegasse à tal conclusão, descartaria do rol de culpados Deus e qualquer infeliz ente da sociedade. Só depois de destruir sua autoimagem e suas expectativas, afundaria-se em um desespero de insatisfação e culpa. Julgaria o ato de morrer desta maneira, vazia e sem sentido, como incompetência exclusivamente sua.

Jamais chegaria a isso. Algo decidira por ele seu destino: nem morrer, nem viver; sua consciência foi levada à uma única lembrança eterna de uma tarde morna na praia, e seu corpo perdeu com o tempo a capacidade de resposta voluntária.

A areia era absolutamente clara e o vento cantava em segunda voz a canção do quebra-mar.

15 de janeiro de 2009

ao desejo

Assim ela escreveu:

Querido,

as flores do último verão, aquelas que você me enviou, ainda vivem; vivem como eu. De uma mentira, pois no final de cada semana compro novas flores idênticas e com elas sua presença ausente; você só no meu desejo.
e hoje acordei sem memórias suas. Só me dei conta quando fui invadida pelo seu rosto naquela fotografia velha dentro do livro perfumado com seu cheiro; a saudade não foi triste, foi um sopro entre meus atos cotidianos, minha vida em meio ao verão.

(por um breve momento ela sorriu e, como se exigisse uma nova ideia ao respirar, os ventos sopram-lhe as folhas de papel e o cabelo, trazendo também um novo fôlego...)

A verdade, meu bem, é que me despeço do nosso jogo íntimo da distância. À mim pouco importa a máscara que carregas, se é que esta também já não se consumiu em meio ao assédio das figuras que te acompanham; se me visse novamente, quero dizer, como sei que vai me ver, irá me encarar como novidade, como se seus olhos tivessem perdido a cor azul-grafite do seu ego. E então, sua vontade, enfim, será minha.

...

10 de janeiro de 2009

Monólogo das Três Vozes em meio ao Silêncio

Simplifique para mim toda voz, pois meu silêncio, nesta vida, não me permite dizer coisas importantes.
Simplifique para mim seus valores máximos, pois amor e coragem são tão imensos que, quando entram na gente, fazem tudo parecer mais fácil. Mas não é.
E quando tentam arrancar-nos essas estranhas forças, ai de nós! Vaza sal e água e é só dor, só dor;

Eis aqui, meus grandes outros, um pouco de aflição e aviso logo que reclamo muito desta coisa chata que é o pensamento. Não me deixa dormir, não me deixa falar o que quero e ainda por cima tem uma 'mãe' que vive com o chinelo na mão, chamada consciência.

Falo demais.
E faço isso porque se não fica tudo aqui dentro moendo, gemendo, gritando sem som algum.
A cabeça da gente é como o Espaço. Não tem barulho e é tudo preto pontilhado de luz. É por isso que dizem eu vivo com a cabeça em outro mundo, nas estrelas, nas nuvens. Eu vivo decorando meus desejos, minhas saudades. Já senti saudade que não doeu. Achei que era outra coisa, saudade em mim sempre doeu. Mas essa foi boa, foi gostosa, igual quando ficamos ao lado de alguém que a gente quer bem. Eu não falo nada, só olho, fico só imaginando todo mundo, porque não precisa ser só uma pessoa, debaixo do Sol e rindo. Rindo de rir. Igual cócega na palma da mão.

As coisas são assim: muito tristes ou muito alegres. Mas e eu? Eu sou uma louca paixão. Amo e odeio demais. Foi assim que concluí. Um diabo angelical ou um anjo endiabrado. Besteira! Sou meu próprio desejo. E desejo não é bom nem ruim. É desejo. Desse jeito posso desejar o que eu quiser, é de graça.
Termino sempre falando de mim, mas até que falei pouco. Eu sou gente, e gente gosta de falar de gente. É por isso que gosto de falar dos outros, dos grandes e dos pequenos. Dos meus. Não importa o tamanho.

Mentira.

Importa sim. Porque se é grande ocupa mais o Espaço, brilha mais, e fica rodando na nossa cabeça sem parar.
Pior é quando tromba com alguma coisa. Com um pensamento fantasioso, daí é sentimento. E o sentimento sai feito louco trombando em tudo. Que nem dominó, castelo de carta, quando a gente nota já foi, já aconteceu.

(...)

É quando queremos fugir, sair da cidade, da clausura do próprio reino de concreto e objetos; reinamos para pilhas de roupas e livros, sou assim. Um rei absoluto no silencioso parlamento dos meus autores favoritos. Todos ao nosso favor quando queremos mais sentido, mais voz no discurso diário nada original; Mas eu os enfrento. Nos meus sonhos não quero ganhar ou perder, apenas ser como os outros 'meus' tão admiráveis, tão tediosamente amáveis em minhas palavras.

Falo demais;
porque minha história é curta e preciso prolongá-la com as histórias dos outros. É como se vive: cada um é um monte de vida alheia.

(...)

Preciso ainda dizer que me apaixono demais. E quando a gente chega e diz: estou apaixonado; encarar não é fácil. Tanto para quem é correspondido ou não. São altos os preços emocionais. E quem investe demais, se fere demais; no final diz que é bobagem, vive para si.

Vivo esse medo: viver só para mim e acreditar que a vida é algo que acontece independentemente da minha vontade ou desejo; principalmente, das minhas interpretações dadas à ela. Seria um desvio tolo acreditar nisso, mas nem sempre conseguimos manter o foco quando observamos uma borboleta.
Fico muito sério em minhas palavras com o tempo; busco o que ainda há para ser dito e tudo parece complicado demais.

Deve-se simplificar. Às vezes é detestável simplificar um raciocínio. Pode ficar tosco. No entanto, minha simplicidade busca por um outro significado.

É engraçado perceber como nos encontramos no sonoro silêncio de uma turba. Como um quadro, permanecemos com uma única expressão, enquanto explodem cor e escuridão à nossa volta. E a única voz que ouvimos é a nossa. A voz de um ego faminto, de uma consciência que nos impôe felicidade ou sofrimento. Mas e quando não queremos nem o bom, nem o ruim? Se o mal que nos afeta da pior maneira somos nós mesmos, como não nos odiarmos?

Eu creio no equilíbrio. O reflexo não é amigo nem inimigo.

Sendo assim, descubro em solilóquios, como outros também descobrirão, que na ausência da interpretação, sem todas aquelas atormentadas diretrizes que ditam o ser ou não ser, há um riso pleno que expressa uma infantil honestidade já perdida. Mas sempre em tempo de ser reencontrada.